Foi-se o tempo em que a participação da comunidade acadêmica na comunicação da ciência se limitava a dar entrevistas e publicar artigos em revistas especializadas. Diante da pandemia de desinformação que se propaga pelas mídias digitais atualmente, é imprescindível que pesquisadores, universidades e outras instituições de ensino se engajem ativamente na produção e na comunicação de informações científicas de qualidade para a sociedade.
Essa é uma das conclusões do livro Desafios e estratégias na luta contra a desinformação científica, produzido por um grupo de trabalho da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e lançado nesta quinta-feira, 20 de junho.
“A divulgação científica deve ser considerada um componente intrínseco das atividades científicas”, diz o documento. “Para isso, é preciso oferecer treinamentos de mídia a cientistas, bem como incentivar a criação de agências voltadas para a divulgação da ciência. Da mesma forma, é essencial que projetos de pesquisa prevejam a contratação de profissionais especializados em divulgação científica para relatar de maneira eficaz os avanços dos estudos, tornando a ciência mais acessível e compreensível para o público em geral.”
O chamado não se aplica apenas a pesquisadores e pesquisadoras individualmente, mas também às instituições em que trabalham — sejam elas públicas ou privadas. “O fortalecimento da comunicação pública das instituições de ensino superior (IES) e instituições de pesquisa é um elemento vital para a proteção da democracia e o fomento de informações confiáveis em meio à atual crise de confiança na autoridade e nas instituições científicas”, diz a publicação. “Em um cenário onde as narrativas contrárias à ciência se tornaram frequentes, as IES seguem fundamentais na defesa da democracia e na promoção de informações confiáveis.”
O documento, de 64 páginas, foi redigido por um grupo de 19 pesquisadores, representando diversas áreas do conhecimento e diversas instituições, que se debruçaram sobre o tema a pedido da ABC ao longo de 2023. O livro é, essencialmente, um relatório do trabalho realizado por esse grupo.
“Se indignar com a existência da desinformação é o primeiro passo. O próximo é fazer alguma coisa a respeito”, disse ao Jornal da USP o professor Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, um dos coordenadores do grupo de trabalho que produziu a publicação. “Precisamos que todo mundo se engaje de alguma forma no enfrentamento desse fenômeno.”
O professor Gustavo Goldman, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP também é coautor do livro pela USP.
A primeira cópia impressa da obra foi entregue em mãos à ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, pela presidente da ABC, Helena Nader, após um evento transmitido on-line a partir de Brasília e do Rio de Janeiro nesta quinta-feira. A publicação traça um panorama da desinformação científica e sugere uma série de medidas para lidar com o problema.
“A disseminação de informações falsas sobre questões científicas, de saúde, ambientais e tecnológicas impacta a capacidade das pessoas de tomar decisões informadas, ao mesmo tempo que reduz a confiança nas instituições científicas e governamentais”, ressalta o documento. “O contexto das plataformas digitais, especialmente as mídias sociais, ampliou essa problemática, fornecendo um ambiente propício para a rápida disseminação de desinformação científica. A estrutura algorítmica dessas plataformas tende a favorecer conteúdos sensacionalistas e enganosos, criando um ecossistema lucrativo para a desinformação.”
Recomendações
A recomendações de enfrentamento à desinformação foram organizadas em seis grupos temáticos: divulgação científica, fortalecimento da comunicação pública das instituições de ensino superior, educação midiática e científica, linhas de pesquisa, plano de ação midiática e redes de conexão com a sociedade civil.
“Como se trata de um fenômeno muito complexo, a gente precisa resolver isso também de maneira complexa”, destaca Thaiane Oliveira, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e co-coordenadora do relatório, em entrevista ao Jornal da USP. Se a desinformação em geral já é complexa por natureza, a desinformação científica se apresenta como um desafio ainda maior, em função das complexidades que são inerentes à própria ciência e ao processo científico, ressalta ela.
Segundo os pesquisadores, as estratégias de combate à desinformação podem ser divididas em duas categorias. A mais comum é a de debunking (termo em inglês que significa desmascarar ou desmentir), que consiste em identificar e corrigir informações falsas ou deturpadas que já estejam circulando nas mídias digitais. A outra é o prebunking, que consiste em “fortalecer a resiliência das pessoas contra a desinformação, fornecendo-lhes as ferramentas, habilidades e conhecimentos necessários para identificar e resistir à desinformação antes mesmo de encontrá-la”, diz o documento.
Uma das formas de aumentar essa resiliência, segundo os autores, é a promoção da educação midiática e científica, que consiste em ensinar as pessoas a pensar criticamente sobre as informações que recebem. “Em um mundo onde informações são amplamente difundidas através de diversas plataformas de mídia e as notícias falsas podem se espalhar rapidamente, a capacidade de discernir a informação confiável da desinformação é uma habilidade crucial”, adverte o livro.
Outro ponto fundamental ressaltado pelo documento é que a vulnerabilidade da sociedade à desinformação não se deve apenas a uma eventual falta de acesso a informações ou incapacidade de compreensão dos fatos, mas a uma gama muito mais complexa de “fatores cognitivos, sociais e emocionais que influenciam a formação de atitudes e posicionamentos”. Em resumo: não se combate desinformação apenas com informação.
“Nós, cientistas, vivíamos um mito de que informação e educação eram a solução para todos os problemas da humanidade; mas a realidade tem se mostrado muito diferente”, reconhece Glaucius Oliva.
“O impacto da informação qualificada e da desinformação varia consideravelmente dependendo do tema em questão, das controvérsias associadas a ele e de fatores como os valores morais, capacidade de integração social, o posicionamento político e a religião das pessoas”, diz o livro. “Em certos casos, os valores pessoais e a trajetória de vida têm mais influência na formação de opiniões sobre temas científicos, de saúde e ambientais do que o conhecimento.”
Ciência vs ideologia
Uma das fontes de informação usadas na confecção do livro foi o trabalho do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), que há anos monitora a percepção da sociedade sobre a importância da ciência e o trabalho dos cientistas no Brasil, em parceria com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).
As pesquisas de opinião realizadas periodicamente pelo grupo indicam que a confiança dos brasileiros na ciência permanece relativamente alta e que não existe um movimento “anticiência” generalizado no País; mas há uma rejeição pontual a temas ou conceitos específicos que contradizem crenças, ideologias ou interesses de determinados grupos.
“É importante ressaltar que algumas pessoas, mesmo expostas à desinformação, mantêm um alto grau de confiança na ciência, enquanto outras, mesmo com acesso ao conhecimento, rejeitam evidências científicas claras”, afirma o documento da ABC. “Pertencer, portanto, a algum grupo que nega evidências científicas, não significa necessariamente ser ‘anticiência’: fatores como posições ideológicas e experiências religiosas influenciam algumas pessoas a acreditarem em narrativas específicas, mas não em todo tipo de desinformação científica.”
Em alguns temas, como a mudança climática, a desconfiança ou negação de fatos científicos estabelecidos pode até ser maior entre pessoas com nível de escolaridade mais elevado e pleno acesso a informações científicas de qualidade.
“A desinformação é muito mais do que falta de informação: é uma recusa. Em alguns casos, um ato político”, escreveu Yurij Castelfranchi, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), membro do INCT-CPCT e também coautor do livro da ABC, em um artigo para o jornal Folha de S. Paulo.
“Grupos de interesses que usam a dúvida como arma acoplam desinformação a valores. O objetivo é atacar mediadores da democracia (jornalistas, Judiciário, cientistas), para que as pessoas construam sua própria ignorância, rejeitando a informação que vem dessas fontes”, escreve Castelfranchi. “O público-alvo não são os ‘ignorantes’, mas todos nós, manipulados para acreditar que, para ser um bom cidadão, verdadeiro progressista ou valente conservador, é preciso rejeitar alguma evidência e receber informações de uma bolha. Por isso, educação científica e checagem de fatos são armas cruciais, mas insuficientes.”
Otimismo cauteloso
Apesar de todos esses complicadores mapeados pelo grupo de trabalho, Thaiane Oliveira, da UFF, disse ao Jornal da USP que sai do processo mais esperançosa do que começou. Não necessariamente com uma solução pronta na manga, mas com uma visão mais clara do que precisa ser feito para lidar com o fenômeno da desinformação — um problema que, segundo ela, chegou para ficar.
“Levando em consideração a forma como nós nos comunicamos, a forma como as plataformas de mídias sociais balizam toda a nossa forma de relação social, é inevitável que a circulação da desinformação relacionada à ciência, tecnologia e inovação ocorra”, avalia Thaiane. “Existem formas de mitigar? Sim, a regulação é uma delas, a conscientização é outra, a educação é fundamental. Só que nenhuma delas vai conseguir, de fato, eliminar por completo a desinformação científica.”
Especialistas da desinformação
Uma das estratégias frequentemente adotadas pelos mercadores da desinformação, que produzem material enganoso para as redes sociais, é o uso de “pseudocientistas” e estudos de má qualidade, para conferir um ar de suposta legitimidade científica ao seu conteúdo.
Um conteúdo que circulou pelas redes sociais e aplicativos de mensagens no início deste ano, por exemplo, buscava conferir honrarias científicas ao médico Flávio Cadegiani, que ganhou notoriedade durante a pandemia de covid-19 justamente por defender o uso de tratamentos sem comprovação científica contra a doença*.
As postagens e mensagens diziam que Cadegiani havia sido condecorado como um dos “melhores cientistas do mundo”, em função de um estudo, conduzido por ele, que teria comprovado a eficácia da ivermectina para prevenção da covid-19. Na verdade, Cadegiani recebeu um prêmio por “contribuições à excelência em pesquisa”, conferido pela FLCCC (Frontline Covid-19 Critical Care Alliance), uma organização notoriamente conhecida pelo negacionismo de evidências científicas nos Estados Unidos, sem qualquer credibilidade nos meios acadêmicos.
O estudo em questão foi publicado em 2022 numa revista considerada de baixo rigor científico (chamada Cureus) e, segundo outros especialistas que avaliaram seu conteúdo, contém falhas metodológicas e analíticas que invalidam seus resultados.
Vários outros estudos realizados antes e depois da pandemia já refutaram essa suposta eficácia da ivermectina (um vermífugo) contra a covid-19 (que é uma doença viral).
As postagens foram checadas pelas agências Aos Fatos, Lupa, e Projeto Comprova, do Estadão Verifica.
Jornal da USP