Com olhar atento aos detalhes e anos de experiência e dedicação às serpentes: foi assim que duas pesquisadoras do Museu Biológico do Parque da Ciência Butantan comprovaram, pela primeira vez, que as aves fazem parte da dieta da cobra-papagaio (Corallus batesii), conhecida no exterior como jiboia-esmeralda da Bacia Amazônica (Amazon Basin emerald tree boa, em inglês). A descoberta foi publicada na revista Herpetology Notes pelas biólogas Circe Cavalcanti de Albuquerque e Silvia Regina Travaglia Cardoso.
O estudo chamou a atenção de um dos maiores especialistas do mundo no gênero Corallus: o pesquisador Robert W. Henderson, curador da coleção herpetológica do Museu Público de Milwaukee, dos Estados Unidos, que já publicou uma série de trabalhos sobre a serpente. Ele chegou a entrar em contato para parabenizar as cientistas do Butantan – surpreendentemente, no mesmo dia em que saiu o artigo.
“Eu sabia que, eventualmente, alguém documentaria a ingestão de aves por Corallus batesii. Parabéns por terem sido as primeiras”, escreveu ele.
Serpentes do gênero Corallus são arborícolas e vivem a maior parte do tempo no topo das árvores de florestas tropicais. São animais oportunistas, que se alimentam de lagartos, pássaros e pequenos mamíferos que passam por elas.
A presença de aves na dieta dessas cobras já havia sido registrada para quase todas as espécies do gênero – com exceção da C. batesii e C. caninus, que vivem na floresta amazônica. A suspeita, porém, existia há décadas na ciência. Suas próprias características físicas são ideais para capturar presas volumosas, com dentes finos curvados para trás e cabeça avantajada. Inclusive, por serem morfologicamente muito parecidas, ambas eram consideradas da mesma espécie até a revalidação de C. batesii por Henderson e colaboradores em 2009.
A história da descoberta de Circe e Silvia começou em fevereiro de 2023, quando o Museu Biológico do Butantan recebeu uma C. batesii, resgatada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – a título de curiosidade, fazia parte da mesma entrega a famosa víbora azul batizada de Rita Lee e atualmente exposta no museu. A cobra-papagaio passou por quarentena para receber cuidados veterinários, assim como todos os animais que são resgatados e encaminhados ao Museu Biológico. Nos primeiros meses, algo chamou a atenção das biólogas.
“A serpente passou dois meses sem se alimentar e, quando defecou, notamos a presença de penas nas fezes. Isso mostra como observar o material biológico do animal e prestar atenção pode ajudar a obter respostas sobre sua biologia”, afirma Silvia.
As cientistas coletaram o material e o conservaram em álcool 70%. Três ornitólogos (especialistas em aves) foram consultados, mas não foi possível identificar a espécie de ave ingerida devido à degradação provocada pela digestão.
O estudo sugere que a ingestão da ave ocorreu na própria natureza, antes do animal ser capturado ilegalmente. O transporte e manutenção inadequados, frequentes durante capturas ilegais da fauna silvestre, podem gerar desidratação e estresse no animal, o que neste caso retardou o processo de defecação e explica o nível de degradação das penas.
Para Circe e Silvia, além da satisfação da descoberta, foi emocionante receber o contato de um pesquisador que é referência para elas. “Foi uma surpresa muito boa. O nosso papel como cientistas é produzir conhecimento, e o que me encanta é que estamos sempre aprendendo. Saber que contribuímos para o conhecimento científico é muito gratificante”, ressalta Circe.
Com informações do I. Butantan