O Instituto de Zootecnia, sediado em Nova Odessa, integrará uma pesquisa nacional inédita para a modificação genética de porcos. O objetivo é que os órgãos dos suínos sejam usados em transplantes para humanos. O IZ finaliza a implantação de um novo laboratório para desenvolvimento dos estudos realizados em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e uma biotech (empresa de biotecnologia) de Hortolândia. A previsão é de inauguração da unidade e início dos trabalhos em outubro, com os transplantes clínicos começando a ser feitos no Brasil dois a três anos.
“A viabilização para transplantar coração, rim, córnea e pele é uma realidade, e os estudos tendem a incluir pulmão e fígado”, afirmou o médico Silvano Raia, pioneiro no transplante de fígado na América Latina, sócio da biotech e professor da Faculdade de Medicina da USP. A pesquisa visa à redução a fila de espera para cirurgias por meio do desenvolvimento de animais que reduzam a rejeição dos órgãos em xenotransplante, nome dado para transplante de células, tecidos ou órgãos de animais para outra espécie.
A previsão é de em um ano ter os primeiros suínos geneticamente disponíveis para estudos. O porco foi escolhido por ter órgãos semelhantes ao do ser humano. Outra vantagem é ter um período de gestação curto, de quatro meses, e a ninhada tem de 12 a 14 filhotes de cada vez. Atualmente, válvulas cardíacas de porcos já são usadas em transplantes humanos, assim como a pele é utilizada no tratamento de queimados. Entre os desafios para viabilizar o xenotransplante está diminuir os riscos de rejeição do órgão transplantados, evitar o crescimento indevido do órgão e a transmissão de doenças.
“O IZ tem a expertise no animal e tudo o que o envolve: ambiente, comportamento, nutrição, tratamento de efluentes, controle de ar, controle de doenças”, explicou a diretora do Núcleo Regional de Pesquisa de Tanquinho do IZ, a pesquisadora científica Simone Raymundo de Oliveira.
A pesquisa envolverá uma equipe multidisciplinar, com a participação de médicos, farmacêuticos, veterinários, biólogos e outros profissionais. De acordo com Simone, inicialmente a pesquisa será realizada com uma linhagem comercial e depois envolverá uma raça importada chamada cientificamente de mini pig – não é o mesmo usado como animal de estimação –, que atinge o peso máximo de 90 quilos e os órgãos param de se desenvolver.
SELEÇÃO
Com a pesquisa, será feita toda a parte de seleção até se chegar ao animal destinado ao uso de órgãos para transplante. O laboratório em construção pelo Instituto de Zootecnia é de alto nível de segurança biológica, com acesso restrito aos envolvidos na pesquisa e capaz de impedir a contaminação dos porcos geneticamente modificados que circulam do lado de fora.
“Até os alimentos que serão fornecidos aos animais serão submetidos à irradiação gama para esterilização e para evitar qualquer possibilidade de ter algum patógeno”, explicou Simone de Oliveira.
“Eu chamo esse projeto de produção de vida para vidas”, afirmou a diretora do Núcleo Regional de Pesquisa de Tanquinho do IZ, localizado em Piracicaba. “Não é só o suíno, mas os animais podem contribuir para que tenhamos uma vida mais prolongada, com qualidade, além de já fornecer uma proteína nobre. É lindo”, acrescentou a pesquisadora.
Os avanços do xenotransplante ocorrem em todo o mundo. Em março passado, o médico brasileiro Leonardo Riella comandou o primeiro transplante de rim de um porco geneticamente modificado para um paciente humano vivo. A cirurgia foi realizada em um hospital de Boston, nos Estados Unidos, com o suíno usado sendo desenvolvido por outro brasileiro, o pesquisador Luís Mauro Queiroz. A técnica foi escolhida em função do quadro do paciente ser gravíssimo, mas não foi divulgado um prognóstico para a expectativa de vida depois do transplante.
Em estudos internacionais, os cientistas consideram que o xenotransplante pode ajudar, por exemplo, os pacientes com insuficiência renal que não têm doador compatível e cuja expectativa de vida é menor do que o tempo de espera por um órgão humano. Antes da cirurgia realizada por Leonardo Riella, o rim suíno havia sido usado apenas em pacientes com morte cerebral. Na Universidade de Medicina de Maryland, nos Estados Unidos, os médicos já usaram o coração de porco em dois pacientes.
A utilização de suínos geneticamente modificados exigiu que os receptores tomassem imunossupressores, medicamentos para evitar a rejeição do órgão transplantando. No entanto, eles são usados mesmo nas cirurgias tradicionais, uma vez que o sistema imunológico dos pacientes tende a tratar o órgão transplantando como uma infeção e o atacar, o que provoca a rejeição.
CIRURGIAS E FILA DE ESPERA
A pesquisa a ser realizada pelo IZ, USP e a biotech são uma nova esperança para pacientes na fila de espera por um transplante de órgão. Doente renal crônica há 12 anos, a arquiteta Vanessa Helal Gama entrou neste mês no cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS) para o procedimento ao iniciar a diálise peritoneal. O método inovador permite aos pacientes realizar a terapia renal substitutiva no conforto de suas casas, com um cateter permanente fazendo a introdução da solução que removerá as substâncias acumuladas no sangue – ureia, creatinina e potássio.
Até então, a paciente controlava a doença renal com medicamentos. “O transplante é a melhor solução hoje para o doente renal. A dieta se normaliza, as atividades físicas se normalizam. A qualidade de vida é muito melhor após o transplante. Os outros tratamentos são paliativos”, disse Vanessa Gama.
O Brasil é referência no transplante de órgãos, sendo o quarto país do mundo em número absoluto de procedimentos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre janeiro e setembro de 2023 o resultado foi o melhor dos últimos dez anos. Foram realizados 6.766 transplantes nesse período, aumento de 11,74% em comparação aos 6.055 de todo o ano de 2022. Mesmo assim, há 43,7 mil pessoas na fila à espera de um órgão para transplante.
Os pacientes aguardam principalmente o surgimento de um doador de rim em 40.446 casos. Depois vem o fígado, com 2.297 pessoas, seguido por coração (404), pâncreas (388), pulmão (201) e multivisceral (6). Esse último tipo envolve cinco órgãos que precisam ser doados por uma mesma pessoa, tornando o processo mais complexo e demorado. O tempo médio de espera por um órgão para transplante é de 18 meses, mas o prazo pode variar de acordo com o tipo de cirurgia, estado de saúde do paciente e volume de doadores.
Cerca de 95% dos transplantes no Brasil são feitos pelo SUS. Segundo os dados oficiais, de cada 14 pessoas aptas a doar, apenas duas se tornam doadoras de fato. Somente no ano passado, 3 mil pessoas morreram à espera de uma doação de órgão. De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), isso acontece principalmente por dois fatores, a identificação da morte cerebral e a autorização da família para a doação. Para tentar acelerar a doação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) lançaram a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), através da qual o interessado pode declarar em cartório o desejo em um dos 8.344 cartórios de notas no país.
O preenchimento digital é gratuito. No primeiro mês de funcionamento, 4.447 pessoas formalizaram a vontade de ser doador. De qualquer forma, a retirada do órgão após a morte ainda depende de autorização da família. Para estimular a adesão à Aedo e os familiares a aceitarem o desejo declarado em vida pelo doador, o CNJ e o CNB/CF realizaram a campanha “Um Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém”.
Fonte: Correio Popular (Foto: Universo da Saúde Animal)