Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo

Atua na defesa dos Institutos Públicos de Pesquisa Científica do Estado de São Paulo

Máscaras científicas

Afonso Peche Filho*

A ciência, em sua expressão mais nobre, deveria ser o território da transparência intelectual, da busca sincera pela verdade e da cooperação entre mentes curiosas. Entretanto, como toda construção humana, ela é atravessada por tensões, disputas, vaidades e mecanismos de proteção que raramente são mencionados nos discursos oficiais. A figura do cientista, idealizada como símbolo de racionalidade e objetividade, muitas vezes oculta um conjunto de máscaras que moldam comportamentos, relações e escolhas metodológicas. Ao observar o cotidiano das instituições científicas, percebe-se que a neutralidade proclamada é, em muitos momentos, substituída por estratégias de autopreservação, camadas defensivas e papéis sociais desempenhados quase como personagens.

A primeira dessas máscaras é a máscara da infalibilidade. Espera-se que o cientista seja alguém que domina completamente seu campo, que não erra e não hesita. Essa expectativa cria um clima de rigidez, no qual dúvidas, necessárias ao avanço do conhecimento, são escondidas para não comprometer reputações. Assim, surgem pesquisas excessivamente seguras, avessas ao risco, que repetem caminhos estabelecidos em vez de abrir novas perguntas. O medo de parecer vulnerável aprisiona talentos promissores numa lógica de reprodução do que já é aceito, ocultando incertezas sob uma expressão de confiança artificial.

Outra máscara comum é a máscara da neutralidade absoluta. Embora a objetividade seja um princípio ético fundamental, ela não elimina o fato de que todo pesquisador possui referências culturais, experiências pessoais, limitações materiais e, frequentemente, compromissos institucionais. Porém, ao performar a imagem de “cientista neutro”, evita-se discutir como interesses financeiros, disputas políticas ou narrativas hegemônicas moldam agendas de pesquisa. Essa máscara impede que se reconheçam condicionantes que afetam o processo investigativo, e ao fazê-lo, dificulta a construção de uma ciência realmente crítica e consciente de si mesma.

Há também a máscara da produtividade, exigida pelo sistema contemporâneo de métricas, rankings e avaliações quantitativas. Nessa lógica, publicar torna-se mais importante do que compreender; produzir dados, mais valioso que interpretá-los; multiplicar artigos, mais prestigiado do que transformar a realidade com base no conhecimento. O cientista veste essa máscara quando aceita sacrificar profundidade pela velocidade, criatividade pela repetição, cooperação pela competição. O resultado é uma comunidade exausta, frequentemente desconectada dos problemas concretos da sociedade que a sustenta.

A máscara da competência solitária aparece quando o pesquisador se vê compelido a mostrar que tudo sabe, tudo explica e tudo resolve sozinho. Em vez de reconhecer a natureza colaborativa da ciência, muitos preferem representar o papel do gênio isolado, o que inibe parcerias, oculta dificuldades e cria ambientes hierarquizados onde poucos brilham enquanto muitos permanecem invisíveis. Essa máscara reflete a dificuldade de aceitar que o conhecimento é tecido por múltiplas mãos e que a soberba epistêmica enfraquece a própria solidez do trabalho científico.

Há ainda a máscara institucional, aquela que o cientista veste ao representar sua organização, sua linha de pesquisa ou seu grupo de referência. Nesse papel, crítica interna pode ser lida como deslealdade, e divergência metodológica como ameaça ao prestígio coletivo. Assim, o pesquisador modula sua voz para não desagradar estruturas de poder, ajusta seus anseios ao que é financiável, cala-se diante de limitações éticas para evitar conflitos. A máscara institucional é talvez a mais difícil de retirar, pois envolve não apenas escolhas pessoais, mas todo um ecossistema que legitima carreiras e distribui recursos.

Por fim, existe a máscara da modéstia, ironicamente útil para ocultar ambições. Muitos cientistas, temendo parecer arrogantes, escondem conquistas ou relativizam contribuições reais. Outros, ao contrário, utilizam uma falsa modéstia como estratégia retórica para valorizar ainda mais seus próprios feitos. A modéstia autêntica, aquela que reconhece limites sem negar méritos, é rara; em seu lugar, proliferam expressões cuidadosamente calculadas para construir reputação.

Essas máscaras não são totalmente negativas; em alguns casos, funcionam como proteções necessárias diante de ambientes hostis. O problema surge quando elas deixam de ser instrumentos e passam a ser identidades permanentes, substituindo a espontaneidade e a honestidade intelectual. A ciência perde brilho quando seus agentes se escondem demais. Perde coragem quando sacrifica dúvida em nome de imagem. Perde humanidade quando transforma pesquisadores em personagens rígidos de um teatro de excelência.

Reconhecer essas máscaras é o primeiro passo para superá-las. Isso exige coragem, ambiente institucional saudável e uma ética de vulnerabilidade consciente. O cientista não precisa ser infalível para ser respeitável; não precisa ser neutro para ser ético; não precisa produzir em excesso para ser relevante; não precisa agir sozinho para demonstrar competência. O que realmente engrandece a ciência é a capacidade de cultivar integridade, espírito crítico, transparência e compromisso com o bem comum.

Desfazer as máscaras científicas não significa rejeitar rigor, mas humanizar o conhecimento. Significa recuperar o valor do diálogo, da cooperação e da dúvida fértil. Significa restaurar o vínculo entre pesquisa e sociedade, reconhecendo que a ciência não existe por si mesma, mas como parte de uma comunidade ampliada que busca compreender e cuidar do mundo. Se as máscaras existem, é porque a ciência também é feita de medos; superá-las, porém, é o caminho para que o pesquisador reencontre sua própria essência e permita que a ciência seja aquilo que sempre prometeu ser: uma prática de verdade, liberdade e responsabilidade.

* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.

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