
Pesquisador aposentado do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) fala sobre sua trajetória, suas descobertas e os desafios da citricultura
Visionário, discreto e obstinado, o pesquisador Gerd Walter Müller é um dos nomes mais importantes da ciência agrícola brasileira. Nascido no Rio de Janeiro, em 1937, e formado em Agronomia pela então Escola Nacional de Agronomia — atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro — Müller dedicou sua vida a um dos maiores patrimônios do país: os laranjais paulistas. Foi ele quem desenvolveu, no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), o método de “vacinação” das laranjeiras contra o vírus da tristeza, uma das doenças mais devastadoras da citricultura mundial.
Sua pesquisa pioneira, baseada na inoculação de cepas enfraquecidas do vírus em plantas sadias, permitiu criar laranjeiras pré-imunizadas, resistentes às infecções mais severas. Graças a esse avanço — uma forma de premunização vegetal —, a citricultura paulista pôde se reerguer após um colapso quase total nos anos 1940 e 1950, e o Brasil consolidou-se como maior produtor e exportador de suco de laranja do mundo.
Ao longo de mais de três décadas de atuação no IAC, Gerd Müller consolidou-se como referência internacional, tendo sido consultor em países como Israel, Argentina, África do Sul, Costa Rica e Colômbia. Seus estudos não apenas transformaram a citricultura brasileira, mas também inspiraram gerações de fitopatologistas e virologistas agrícolas.
Hoje, aos 88 anos, Müller mantém o mesmo brilho nos olhos de quando começou sua jornada entre tubos de ensaio e mudas de laranja. Ele fala com a serenidade de quem sabe ter deixado um legado histórico para o campo, para a ciência e para o país.
Em 2 de outubro de 2025, o pesquisador concedeu esta entrevista à Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), relembrando sua trajetória, o impacto de suas descobertas e sua visão sobre o futuro da pesquisa científica no Brasil.
APqC: Onde e quando o senhor nasceu?
Gerd: Nasci em 29 de junho de 1937, no bairro Rio Comprido, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Sou, pois, um citadino. Meu contato com o campo foi num sítio que meu avô tinha em Teresópolis. No entanto, sempre quis trabalhar com plantas, assim prestei vestibular na Escola Nacional de Agronomia (ENA), atual Universidade Rural Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ).
APqC: Quando decidiu seguir a carreira de pesquisador científico? O que o motivou a trilhar esse caminho profissional?
Gerd: Penso que a minha trajetória profissional se deu por acaso, e eu tinha pendor para a pesquisa. Nas horas vagas, trabalhava no laboratório de Fitopatologia do Instituto de Pesquisas Agrícolas Centro-Sul (IPEACS), que mais tarde passaria para a Embrapa. No ano de 1960, estagiei na Seção de Virologia do Instituto Biológico de São Paulo. Diplomei-me em 1961. Obtive o título de Doutor em Agronomia pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, em Piracicaba, em 1973. Fui pesquisador visitante no United States Department of Agriculture, em Orlando, Flórida (EUA), em 1980.
APqC: O que é a “tristeza da laranja” e como o senhor ajudou a combatê-la?
Gerd: A tristeza é uma doença de Citrus causada por um closterovírus, de partículas filamentosas com cerca de 2000 nm de comprimento e 12 nm de largura, que se aloja no tecido do floema. A introdução da tristeza no Brasil, vinda da África do Sul, provocou a destruição das áreas produtoras de citros mais importantes do país, pois eram as que, de preferência, utilizavam o então reconhecido como o melhor porta-enxerto para as copas comerciais, a laranja-azeda (Citrus aurantium L.). Esse cavalo origina, na maioria dos casos, combinações intolerantes à tristeza com quase todas as copas comerciais de citros. A tristeza tornou-se, em poucas décadas, onipresente no Brasil, matando todos os pomares de laranja-doce sobre azeda. Mesmo antes que a etiologia da tristeza fosse esclarecida, observações mostraram que a moléstia não afetava certas combinações em que o cavalo não era a laranja-azeda. Trabalhos experimentais mostraram que a laranja-doce enxertada em limão-cravo (C. reticulata Blanco) originava combinações tolerantes. Com base nesses conhecimentos, a citricultura brasileira superou, na época, um dos seus maiores problemas. O controle da tristeza pelo uso de cavalos tolerantes solucionou o problema para grande número de copas comerciais de citros. Mas, com o passar do tempo, foi notado que algumas variedades, como a laranja ‘Pêra’ (C. sinensis (L.) Osbeck), o limão ‘Galego’ (C. aurantifolia (Christm.) Swing.) e os pomelos (C. paradisi Macf.), apresentavam problemas causados pelos isolados fortes, que induziam ananicamento das árvores, frutos de diâmetro reduzido e caneluras, mesmo quando enxertados em cavalos tolerantes. A explicação era que esse fato ocorria sempre que a copa era do tipo que permitia multiplicação do vírus e tinha tecidos sensíveis. Tornou-se então necessário desenvolver um método de controle da doença para esses tipos de citros, de grande importância citrícola para São Paulo.
APqC: Como seus estudos ajudaram a salvar a produção de laranja no Estado de São Paulo? O que isso significou na época?
Gerd: A abordagem mais promissora para solucionar o problema foi a baseada na premunização (proteção cruzada), isto é, a inoculação de material sadio das variedades em apreço com isolados fracos do vírus, que oferecessem proteção em campo à superinfecção natural pelo complexo normal forte. Resultados favoráveis obtidos anteriormente justificavam essa abordagem. Em 1959 foi firmado um projeto cooperativo, com duração de cinco anos, entre o IAC e o governo norte-americano, cujo objetivo era justamente investigar a possibilidade de controlar a tristeza em copas de citros sensíveis por meio da premunização. Fui convidado para trabalhar na Seção de Virologia do Instituto Agronômico no início de 1962, para atuar no projeto em pauta. Possivelmente, em parte, por tomar gosto logo de início pelo assunto — mas principalmente por estar sob a liderança do grande pesquisador Álvaro Santos Costa — recebi, pelo seu entusiasmo, grande capacidade de trabalho e dedicação ao dever, o estímulo e a formação profissional para levar a bom termo o programa que me fora incumbido de executar. Como resultado do trabalho efetuado — praticamente o único no mundo que atingiu escala comercial de desenvolvimento — ressurgiu a possibilidade de novamente se cultivar satisfatoriamente a laranja ‘Pêra’, utilizando material premunizado com estirpes fracas de tristeza, que protegem as plantas contra a invasão pelas estirpes fortes do complexo. A distribuição do melhor material premunizado, a partir de 1968, e rapidamente aumentada pelos citricultores, fez com que fosse atingido o expressivo número de várias dezenas de milhões de árvores da variedade em pauta no Estado de São Paulo e estados limítrofes, descendentes do material premunizado. Observações nessa grande população de árvores premunizadas têm mostrado o alto desempenho das mesmas até os dias atuais. Comparações recentes com outros clones destacados têm mostrado que os premunizados situam-se sempre entre os primeiros. A primeira indústria de suco cítrico foi instalada em Araraquara (SP) em 1963, sendo logo seguida por outras. A laranja ‘Pêra’ é a fruta adequada para processamento — tudo nela é aproveitado. Em grande parte, graças a ela, o Estado de São Paulo e regiões limítrofes tornaram-se os maiores produtores de suco do mundo. Assim, acho que contribuí para que cifras enormes viessem para o Brasil nessas últimas décadas.
APqC: O que de suas descobertas ainda é válido hoje no combate às doenças dos citros?
Gerd: Os problemas de vírus e viróides na citricultura paulista foram satisfatoriamente resolvidos há muito tempo. Talvez o legado que eu e outros colegas deixamos seja o de que não se pode desanimar. Naturalmente, para trabalhar a contento, são necessárias condições adequadas — pelas quais a APqC luta.
APqC: Que impacto internacional tiveram suas pesquisas?
Gerd: Os conhecimentos gerados nos trabalhos transpassaram as fronteiras do Brasil, sendo reconhecidos e aplicados em outros países nos quais atuei como consultor: Israel (1972); Argentina (1970, 1974 e 1981); África do Sul (1983); Costa Rica (1986); Colômbia (1986, 1987, 1990 e 1992); Venezuela (1986); Nicarágua (1992) e Belize (1993–94).
APqC: Quais são os desafios atuais da citricultura?
Gerd: Atualmente, o problema mais grave é o HLB (“greening”), causado por uma bactéria de floema; assim, a abordagem de controle é outra. Temos também o cancro cítrico, causado por outra bactéria, e, finalmente, o vírus da leprose.
APqC: O senhor está aposentado há quantos anos? Ainda mantém o interesse por assuntos relacionados à pesquisa científica?
Gerd: Estou oficialmente aposentado há 31 anos. Aposentei-me com 34 anos de atividades na então Seção de Virologia do IAC, não que não tivesse vontade de continuar trabalhando, mas porque as condições de trabalho já na época estavam bastante desfavoráveis. Aposentado, fiquei oito anos no Centro de Citricultura Sylvio Moreira (CCSM) do IAC, depois três anos na Universidade Estadual de Maringá (PR). Na volta para Campinas, tentei trabalhar como consultor em algumas universidades, mas sem êxito. Finalmente, trabalhei como consultor na companhia Citrosuco, na região de Itapetininga, sudoeste do estado, até o começo da pandemia de Covid-19. Mantenho aceso o interesse por assuntos científicos na minha área.
APqC: Como o senhor tem visto a tentativa do governo de São Paulo de vender áreas pertencentes ao IAC e de alterar a carreira de pesquisador científico? De que forma isso pode impactar as pesquisas?
Gerd: Embora, devido a problemas de saúde, eu não tenha mais participado dos eventos programados pela APqC em prol da ciência e tecnologia, tenho acompanhado o trabalho hercúleo da entidade para conseguir a equiparação salarial com as universidades do estado e melhores condições de trabalho. No meu entender, as áreas de pesquisa são “sagradas”, nunca devendo ser vendidas. Também a carreira de pesquisador científico nunca deveria ser alterada, pois é um marco no qual o pesquisador ascende por mérito. Qualquer alteração nesse sentido será negativa para as pesquisas.
Entrevista a Bruno Ribeiro (02/10/2025)