O Brasil viveu uma queda exponencial das coberturas vacinais desde 2015, sobretudo na imunização infantil, e a causa do fenômeno tem relação direta com o crescimento da hesitação vacinal no país, fruto de uma série de fatores, segundo estudos científicos que visam desvendar o tema.
“Desabastecimento de vacinas; mais mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, com menor disponibilidade de levar os filhos aos postos de saúde; mudanças no sistema de informação do Programa Nacional de Imunizações, que passou a ser nominal e trouxe mais complexidade às notificações; além da disseminação de fake news pelas redes sociais são alguns dos fatores relacionados às quedas das coberturas vacinais no Brasil”, analisa a gestora médica de Desenvolvimento Clínico do Butantan Carolina Barbieri, estudiosa da hesitação vacinal no país.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cobertura de imunização infantil no mundo estagnou em 2023, deixando 2,7 milhões de crianças sem imunização ou com vacinação insuficiente, comparado a 2019. Um levantamento do Ministério da Saúde sobre a cobertura vacinal no Brasil entre 2015 e 2021 mostrou que os índices chegaram a 97% em 2015, mas caíram para 75% em 2020. As maiores quedas estavam relacionadas às vacinas BCG (38,8%) e Hepatite A (32,1%) – ambas indicadas no primeiro ano de vida.
Em 2021, o Brasil ficou em sétimo lugar na lista do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) entre os 20 países com mais crianças não vacinadas do mundo. Mas, em 2023, conseguiu sair da lista ao reverter a tendência de queda de oito imunizantes do calendário infantil.
O que é hesitação vacinal?
O conceito de hesitação vacinal foi criado pela OMS em 2014, e se refere ao atraso na aceitação ou à recusa em vacinar-se, apesar da disponibilidade de serviços de imunização. O termo foi cunhado pelo Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (SAGE), formado após a organização perceber o declínio das coberturas em vários países a partir de 2009. O grupo criou o modelo dos “3 Cs” – confiança (confidence), conveniência (convenience) e complacência (complacency) para medir o nível de hesitação vacinal em 140 países. Com o tempo, incluiu mais dois Cs (comunicação e contexto) entre as causas da hesitação.
“Em 2022, buscando entender os motores comportamentais e sociais da vacinação, o grupo redefiniu hesitação vacinal como um estado motivacional de conflito ou oposição à vacinação, que inclui intenções e vontades”, esclarece Carolina Barbieri.
A internet e o ponto de virada
Com a disseminação do uso da internet no Brasil após 2010, sobretudo pela popularização dos smartphones, o conteúdo antivacina atingiu cada vez mais pessoas por adotar um tom emotivo e carregado de pânico. Um exemplo foi a repercussão de um caso ocorrido no Acre em 2014, quando meninas vacinadas contra o HPV relataram desmaios e convulsões após receberem o imunizante. Mesmo com um estudo comprovando que se tratavam de reações psicogênicas associadas a intenso estresse ou medo de injeção, até hoje a cobertura da vacina contra o HPV não chegou à meta de atingir 90% do público-alvo.
O imunizante indicado para meninos e meninas de 9 a 14 anos como prevenção ao papilomavírus humano, que pode causar câncer do colo do útero e câncer genital, fabricado e entregue ao Ministério da Saúde pelo Instituto Butantan, ainda é alvo dessa e de outras fake news.
“Por causa de informações falsas sobre esse imunizante, o Butantan recebeu uma grande quantidade de notificações de eventos adversos da vacina que não eram verdadeiros”, lembra Vera Gattás, responsável pela Farmacovigilância do Instituto Butantan.
A hesitação vacinal no Brasil também envolve o próprio sucesso dos programas de imunização. A ausência de pessoas acometidas por doenças preveníveis por vacinas oferece às novas gerações uma falsa sensação de que não precisam tomar as doses nem os reforços.
“Sem ver a gravidade das doenças, o olhar sobre a vacinação pode passar a ser questionado por algumas pessoas. O foco passa a ser direcionado aos eventos adversos, que, embora raros, existem, e podem ser vistos como um problema a ser evitado. Por isso, precisamos reforçar que o fato de a doença não circular mais ou gerar menos hospitalizações é justamente pela prática de imunização”, afirma Carolina Barbieri.
Para Vera Gattás, faltou um trabalho com os próprios profissionais de saúde que também são impactados pelas informações falsas. “Estávamos deitados em berço esplêndido porque tínhamos coberturas altas e nos incomodamos pouco em aprimorar as informações sobre segurança de vacinas para quem estava na ponta.”
Por muitos anos o Brasil colheu os êxitos de uma cultura de vacinação bem consolidada. O Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973, viveu seu auge nas décadas de 1980 e 1990, com campanhas midiáticas como o “Dia D da Vacinação” e o personagem Zé Gotinha, atingindo anualmente coberturas vacinais de 90% entre os públicos-alvo. Em 1991, o PNI foi laureado com o Prêmio Criança e Paz da UNICEF pelos esforços em prol da imunização infantil. Em 1994, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) fez o anúncio histórico da erradicação da poliomielite no Brasil.
Hesitação vacinal 2.0
O problema ganhou uma roupagem moderna no começo dos anos 2000, mesmo quando ainda não era nomeado dessa forma. Os “hesitantes modernos” tinham um estilo de vida mais natural e enxergavam as vacinas como algo “químico”. Mas foi o impacto de um estudo fraudulento que associava a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) ao autismo em crianças que aumentou a desconfiança em relação aos imunizantes em uma escala sem precedentes, reverberando até os dias atuais.
O artigo publicado pelo médico britânico Andrew Wakefield em 1998, na revista médica The Lancet, foi desmentido em 2004 e retirado da revista, após a investigação do jornalista britânico Brian Deer ter provado que a pesquisa era uma fraude. O jornalista veio ao Instituto Butantan em 2019, no evento científico “100 Anos da Gripe Espanhola – Imagine o Mundo sem Vacinas”, onde contou sobre a investigação.
Os mais de seis anos que separam a publicação do artigo enviesado e a retratação foi tempo suficiente para surgir uma avalanche de notícias falsas e de boatos, que atualmente ganharam novas faces nas redes sociais.
“O artigo fraudulento foi devastador porque fez a cobertura de sarampo cair imediatamente em vários países do norte global. A comunidade científica ficou anos estudando até ser esclarecido que não há nenhuma relação causal entre a vacina do sarampo e o autismo, apenas uma correlação temporal, mas até hoje precisamos desmentir isso”, aponta Carolina Barbieri.
Em 2019, a OMS pontuou a hesitação vacinal como uma das dez ameaças à saúde global, colocando-a no mesmo patamar das mudanças climáticas, da influenza pandêmica e da resistência antimicrobiana, entre outras.
“A hesitação vacinal não deve ser confundida com o negacionismo científico, pois seu enfrentamento passa pela escuta dos hesitantes e pela comunicação efetiva e transparente de evidências científicas sobre segurança e eficácia das vacinas”, esclarece Carolina Barbieri.
Hesitação entre ‘os mais ricos’
Alguns estudos brasileiros demonstraram o caráter classista da hesitação vacinal até a primeira década dos anos 2000 no Brasil. Um deles, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, mostrou que o percentual de crianças completamente imunizadas era maior entre as crianças residentes em áreas mais pobres do que as das áreas mais ricas. As coberturas das vacinas BCG, poliomielite oral e hepatite B eram significativamente menores entre as crianças das regiões mais abastadas. O estudo, publicado na prestigiada revista médica British Medical Journal e feito com mais de 17 mil crianças em 26 capitais e no Distrito Federal, calculou a cobertura de vacinas recomendadas para crianças de até 3 anos, entre 2007 e 2008.
Já em sua tese “Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP”, Carolina Barbieri entrevistou 16 casais de alto poder aquisitivo, dos quais cinco vacinaram, cinco selecionaram as vacinas e seis não vacinaram os filhos, concluindo que aqueles que não optaram pela imunização relataram sentimento de medo diante da possibilidade de perda da autonomia nas decisões sobre a saúde dos filhos.
“Todos os casais participantes, independentemente da postura quanto à vacinação, tomaram suas decisões norteadas por uma perspectiva individual, não sendo mencionada a função coletiva da imunização”, destacou o trabalho defendido em 2014 pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Hesitação vacinal no Brasil
Com o tempo, o perfil dos hesitantes foi ganhando novas camadas e o hábito de se vacinar aparentemente deixou de ser regra no Brasil. As quedas nas coberturas ficaram mais visíveis em 2015, quando o Brasil registrou os últimos casos de sarampo. Em 2016, o Brasil chegou a receber da OPAS o certificado de país livre do sarampo, mas o perdeu em 2019 após nova epidemia associada à queda da vacinação.
A epidemia de sarampo voltou em 2018, com mais de 1.500 casos em Roraima e no Amazonas, e, em 2019, com 18 mil casos no estado de São Paulo. O ano de 2019 também foi marcado por um triste índice: pela primeira vez em 25 anos, o Brasil não atingiu a meta de imunizar 90% do público-alvo de nenhuma das 15 vacinas indicadas no calendário básico do Ministério da Saúde.
“O estrago havia sido feito com aquela pesquisa fraudulenta no início dos anos 2000, e a descrença sobre as vacinas não diminuiu com o tempo”, afirma Vera Gattás.
O mapa do Índice de Confiança em Vacinas (Vaccine Confidence Project – VCP), projeto que avalia 140 países, mostra bem a queda de confiança nos imunizantes ao longo dos anos no Brasil. Em 2015, para 99% dos entrevistados brasileiros, o produto era importante para as crianças, enquanto a mesma afirmação se manteve entre 88% dos entrevistados em 2022.
Em 2015, 93% achavam as vacinas seguras, 94% as julgavam eficazes e 95% consideravam os imunizantes compatíveis com a crença dos brasileiros, mas em 2022 os percentuais caíram para 88%, 87% e 79%, respectivamente. A pesquisa “Confiança nas vacinas e hesitação em vacinar no Brasil”, publicada em 2018, esquadrinhou os motivos da hesitação vacinal no país no período. As razões mais comuns foram questões de confiança (41,4%), eficácia/segurança da vacina (25,5%) e preocupações com os eventos adversos (23,6%).
Competição entre pró e antivacinas
Um estudo publicado na revista Nature em 2020 ajudou a entender como e por que a desinformação sobre vacinas vinha ganhando tanto espaço. Pesquisadores da George Washington University analisaram três milhões de perfis pró e antivacina no Facebook nos Estados Unidos, concluindo que notícias falsas sobre o tema tinham uma penetração muito mais rápida nas redes do que as verdadeiras.
A velocidade, por sua vez, era determinante para espalhar desconfianças sobre a comunidade científica. No Brasil, durante a pandemia de Covid-19, a trajetória das fake news sobre imunização seguiu a mesma lógica, com o adendo de ser apoiada pelo próprio governo brasileiro.
“A partir de 2020 a hesitação foi se aprofundando por aqui em várias esferas. Quando foi recomendado o imunizante contra o novo coronavírus para idosos e crianças, vários estados deram autorização legal para não vacinar as crianças. As pessoas passaram a subjugar a doença, que causou e ainda está causando estragos. Essa questão adentrou os serviços de saúde, quando até médicos passaram a não recomendar o produto, mesmo tendo comprovação científica de eficácia e segurança”, lembra Vera Gattás.
Tem como reverter?
Para as especialistas do Butantan, é preciso se atentar ao momento histórico e rever toda a comunicação que envolve o universo das vacinas a fim de fazer as pessoas voltarem a acreditar no poder e na capacidade que os imunizantes têm de salvar vidas.
“O serviço de saúde precisa ser mais incisivo, ter mais campanhas. O gasto com isso é muito menor do que o com pessoas adoecendo no Sistema Único de Saúde e em outros sistemas. O custo-benefício das vacinas é muito alto, porque quando se realiza a vacinação, milhões de crianças deixam de morrer”, afirma Vera Gattás.
De acordo com Carolina Barbieri, a hesitação vacinal está passando por um contexto sem precedentes na atualidade, que vive uma “ressaca emocional pós-pandemia”, que exige uma inovação na forma de informar sobre vacinas e imunização.
“As antigas campanhas, focadas na colocação de cartazes em postos de saúde ou no uso de celebridades nas propagandas, já não dão conta de informar ou sensibilizar a nova geração, perdendo em rapidez e eficácia para as fake news”, pondera.
Porém, essa realidade não pode impedir a ciência de continuar atuando e de se comunicar de forma cada vez mais efetiva com a população.
“A verdade é soberana e as pessoas sabem que se salvaram por causa da vacina contra a Covid-19. Com ciência e transparência, os brasileiros vão resgatar a segurança que um dia tiveram. Claro que é um caminho desafiador porque levamos 40 anos para conquistar a credibilidade do PNI e poucos anos para desmontar. Vai ser um trabalho de formiguinha para comunicar, formar e profissionalizar”, pondera Carolina.
Fonte: Camila Neumam (Comunicação Butantan)
Foto: Comunicação Butantan