Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo

Atua na defesa dos Institutos Públicos de Pesquisa Científica do Estado de São Paulo

Entrevista: Raffaella Rossetto, a cientista que elevou o Brasil no cenário global do açúcar e bioenergia

Raffaella Rossetto, pesquisadora científica do Instituto Agronômico (IAC) e diretora do Núcleo de Jaú, é uma das mentes mais influentes do setor sucroenergético brasileiro, reconhecida globalmente ao ser agraciada com o Prêmio Sugar Notables 2025 — honraria que destaca os “melhores dos melhores” da indústria açucareira mundial. Especialista em manejo nutricional da cana-de-açúcar e pioneira na transformação de resíduos como a vinhaça em recursos sustentáveis, ela integra a Academia Brasileira de Ciências Agronômicas (ABCA) e coordena projetos no programa BIOEN da FAPESP, além de atuar em sociedades internacionais como a International Society of Sugar Cane Technologists (ISSCT) — onde já recebeu prêmios por pesquisas inovadoras em preparo de solo. Sua trajetória, marcada por contribuições científicas e políticas públicas como o RenovaBio, reflete um compromisso duplo: avançar a bioenergia e defender a pesquisa pública em meio a desafios como o PLC 9/2025. Nesta entrevista, Rossetto compartilha insights sobre sustentabilidade, tecnologia e os rumos da ciência agronômica.

APqC – Como a senhora avalia a importância de ser a única pesquisadora brasileira entre os sete homenageados globais do Sugar Notables 2025? Que mensagem isso envia sobre a pesquisa agropecuária nacional no cenário internacional?

Raffaella Rossetto – Recebi a notícia com muita surpresa e alegria. Jamais pensei que poderia ser reconhecida internacionalmente como pesquisadora. Certamente, além de meu trabalho junto ao grupo de pesquisas em cana de açúcar do IAC, minha atuação na Sociedades de técnicos açucareiros e alcooleiros do Brasil – a Stab, e internacionalmente representando o Brasil nos congressos internacionais; o fato de ter participado da organização de congressos internacionais de cana no Brasil e reuniões de países produtores de cana de açúcar na América Latina, foram decisivos para a escolha de meu nome entre os homenageados. Me causou muito espanto, entretanto, eu ter sido a primeira mulher a receber o prêmio. O setor ainda é fortemente masculino, mas está mudando. Um dos homenageados, ao me cumprimentar, disse algo assim: eu estou recebendo o prêmio porque já sou idoso, mas as mulheres, ah, elas têm que mostrar muito empenho e muito trabalho para serem reconhecidas. Parabéns. E ouvindo isso, de um senhor já vivido, passei a ter certeza de que este prêmio precisa ser dividido com todas as minhas colegas pesquisadoras científicas do IAC e dos demais institutos. Elas também têm que mostrar muito empenho e muito trabalho para ser igualmente reconhecidas por seus pares.

    O prêmio destacou sua liderança, contribuições setoriais e tempo de serviço. Fale um pouco sobre o que a motivou em seguir a carreira de pesquisadora.

    A carreira de pesquisadora foi meu sonho desde criança. Quando escolhi Engenharia Agronômica eu não tinha ideia das possibilidades que a carreira permitia, mas eu me imaginava trabalhando num laboratório, cuidando de plantinhas. Apesar das dificuldades enfrentadas, a carreira de pesquisadora cientifica nunca me decepcionou. Ter sido aprovada no concurso público do IAC, fazer parte dessa instituição, foi sempre motivo de grande orgulho para mim. O IAC era a casa de diversos pesquisadores que eu admirava muito, e que fui e sou até hoje muito fã, como Dr. Bernardo Van Raij e Dr. Alcides Carvalho. Outros grandes nomes continuaram essa liderança na pesquisa agronômica brasileira, como Heitor Cantarella, Antonio Quaggio, Marcos G.A. Landell, Otávio Camargo, Hilario Miranda, Osmar Lorenzi, Milton Fuzato, Carlos Eduardo Camargo, Hamilton Ramos, Dirceu Mattos Jr. entre tantos outros nomes importantes em suas respectivas áreas. Infelizmente, vejo com certa inquietude a descontinuidade da pesquisa cientifica em função da baixa reposição de pesquisadores no quadro da instituição. Os projetos de pesquisa sofreram ao longo dos anos, grande descontinuidade, em áreas importantes, e o prejuízo será maior ainda nos próximos anos, caso não haja concurso público com número de vagas significativo para repor o corpo de pesquisadores.  

    Seus estudos transformaram a vinhaça de “vilã ambiental” a recurso valioso. Quais os próximos desafios no aproveitamento de resíduos para a economia circular do setor?

    Quando comecei meu trabalho como pesquisadora do IAC, na área de nutrição e adubação da cana, os resíduos da cadeia produtiva do açúcar e etanol, eram tidos como questões problemáticas tanto economicamente como ambientalmente e gerencialmente. A vinhaça era aplicada sempre nos mesmos talhões de cana, por questões econômicas. Muitos estudos realizados não só pela equipe do IAC, mas também por outros pesquisadores das universidades, de institutos privados e pelas usinas, mostraram o valor agronômico desses resíduos e sua importância econômica, reduzindo a dependência na importação de fertilizantes como também atuando na produção de energia e na economia circular. Os resíduos tornaram-se ao longo do tempo, importantes fontes de matéria prima para novos processos, como fermentações, biodigestão ou mesmo evaporação e concentração. A vinhaça a torta de filtro e mesmo a palhada, tornaram-se insumos muito desejados pelas usinas. Atualmente, a vinhaça é base para toda a adubação da cana, aplicada na linha, ambientalmente muito mais segura, e com a possibilidade de agregar todos os macro e micronutrientes desejados, além de outros insumos. Com a biodigestão da vinhaça se produz energia, como metano, e conservam-se os nutrientes para a adubação da cana no lodo gerado. E a cadeia segue, desse metano é possível utilizar os hidrogênios, produzindo amônia verde. Ou seja, a cana gera o caldo que gera açúcar ou que fermentado gera o etanol, que gera como resíduo a vinhaça que biodigerido gera o metano que gera o hidrogênio que gera a amônia, que será o fertilizante nitrogenado verde, com muito menos emissões de gases de efeito estufa. Tenho muito orgulho da cana de açúcar e dessa enorme cadeia que ela proporciona. Exemplo de eficiência e sustentabilidade.

    Como a senhora vê o papel da IA e da agricultura de precisão (como drones e sensores) na otimização da nutrição da cana-de-açúcar, tema central de suas pesquisas?

    Algumas novas tecnologias já estão bem integradas no sistema de produção da cana de açúcar, outras ainda precisam de mais desenvolvimento. Os drones são especialmente utilizados aplicando nutrientes em fases do crescimento da cana em que os implementos tradicionais não conseguem mais atuar. Tratores, plantadoras e colhedoras com sensores, tem permitido que as linhas da cana sejam preservadas e não compactadas, permitindo maior longevidade do talhão.  Os sistemas de taxas variáveis nas máquinas adubadoras também permitem que os insumos sejam mais eficientemente utilizados. A inteligência artificial tem permitido estudos de modelos integrando dados de clima, solo, variedades, produtividade e práticas agrícolas com intuito de gerar melhores diagnósticos e com eles melhores recomendações de correção e adubação. Algumas plataformas digitais armazenam esses dados e cruzam com informações econômicas, auxiliando o agricultor a fazer as melhores escolhas de fertilizantes para as suas condições específicas. Vejo com muito otimismo o desenvolvimento dessas tecnologias porque elas visam a maior sustentabilidade do sistema produtivo.

    Suas pesquisas mostram que o setor reduziu emissões ao deixar de queimar palhada. Que políticas públicas poderiam acelerar essa transição em outros países?

    O setor de cana de açúcar no Brasil tem sido um dos mais eficientes setores em reduzir emissões de gases de efeito estufa pelas mudanças no sistema de produção, pelas novas tecnologias de manejo e por políticas públicas que incentivam as boas práticas. O próprio etanol substituindo combustíveis fósseis representa um ganho enorme na redução de emissões, a cogeração de energia elétrica através do uso de bagaço em caldeiras modernas, a extinção da queimada da palha com ganhos ambientais gigantes e práticas de manejo de baixo carbono como redução em fertilizações nitrogenadas, uso de bioinsumos em substituição a defensivos e fertilizantes minerais, por exemplo. A política conhecida como Renovabio, veio a premiar com créditos de descarbonização, os chamados Cbios, os produtores de etanol cujas ações de descarbonização do sistema produtivo sejam certificadas e comprovadas, tornando cada vez mais sustentável, o setor que já era exemplo de sustentabilidade para o mundo.  As políticas públicas que poderiam ser replicadas para outros países seriam justamente as que incentivam a produção da bionergia, a exemplo das misturas de etanol na gasolina, com metas possíveis que estimulam a produção da matéria prima e do produto etanol. A Renovabio, como política de premiação de práticas com baixa emissão de gases de efeito estufa. Políticas que incentivem a agricultura de baixo carbono, como incentivos às práticas como uso de variedades melhoradas e adaptadas as condições regionais, uso de resíduos, adubação verde, cultivo mínimo, uso de bioinsumos, recuperação de áreas degradadas, ou a integração floresta, lavoura e pecuária, entre outras práticas. Além disso, o incentivo à pesquisa agronômica e agroindustrial é fundamental. Sem elas o futuro é limitado e de nada adiantaria investir em outras políticas de fomento.

    Como membro da ABCA e agora com reconhecimento internacional, como articular a ciência brasileira com as demandas globais por biocombustíveis sustentáveis?

    O Brasil é referência mundial na tecnologia de produção do etanol de cana e de biodiesel de soja. Por ser reconhecido internacionalmente faz parte de diversos organismos de discussão e tomadas de decisão como o IEA – International Energy Agency, IRENA – Agencia Internacional de Energia Renovável, Biofuture Plataform, GBEP – Global bioenergy partnership  e comissões e conferências da ONU, como COP – conferência do clima. Acredito que a Renovabio é uma política a ser replicada por diversos países produtores de biocombustíveis. Como pesquisadora do IAC e como membro da ABCA minha função é difundir os êxitos do setor sucroenergético brasileiro. Neste momento, estou em Jakarta, na Indonésia, onde participaremos nos próximos dias de ações do Itamaraty junto à Asean – que é  a Associação de Nações do Sudeste Asiático, para acordos e plataformas de ações conjuntas entre esses países e o Brasil.  Acredito na eficiência de convênios e protocolos conjuntos de cooperação técnica e cientifica, que promova treinamento técnico com vistas a formar novos talentos e projetos de pesquisa cientifica em conjunto. Estas iniciativas podem alavancar o uso de biocombustíveis em países emergentes, com ganhos locais e globais.

    Com mais de 30 anos no IAC, como avalia a evolução da formação de pesquisadores em canavicultura? Quais competências serão cruciais para os agrônomos do futuro?

    Vejo com bastante clareza, que os conceitos que regem as práticas agrícolas serão sempre mais imprescindíveis que as próprias práticas em si. As práticas mudam muito rapidamente, os conceitos envolvidos, permanecem. De qualquer forma, as mudanças climáticas, as mudanças geopolíticas e as mudanças em tecnologias exigirão dos agrônomos, formação em muitas áreas, além das práticas agronômicas em si, como por exemplo as ciências biológicas e ecológicas. Conceitos de sustentabilidade, agricultura regenerativa e agricultura de baixo carbono e as práticas mais sustentáveis já são exigidos dos agrônomos e serão cada vez mais imprescindíveis. Não se pode esquecer do envolvimento da agricultura com os aspectos sociais. A agricultura é fonte de alimentos, fibras e energia, e a fome com todos os problemas sociais que possam estar associados, terão que ser enfrentados cada vez mais pelos futuros agrônomos. Imagino que os futuros agrônomos terão que ser capazes de compreender cada vez mais os processos integrados de lavoura, pecuária, floresta com a finalidade de aumentar a biodiversidade, a resiliência e a sustentabilidade dos sistemas produtivos. E finalmente estar em dia com todas as novas tecnologias e os novos rumos da ciência. Inteligência artificial, robótica, automação, big data, agricultura digital, estatística e ciências de dados. Economia, empreendedorismo, marketing e ciências afins são já hoje requisitos importantes e serão também no futuro. Espero ainda que os jovens possam entender o valor das relações humanas, da diversidade que existe entre os humanos, de quanto a diversidade nos faz únicos e por isso valiosos, da empatia, do trabalho em equipe, das discussões, do respeito às opiniões diversas, do compromisso com o bem comum, dos objetivos éticos e da responsabilidade social que a carreira de agrônomo nos impõe. Os princípios éticos de um profissional regem toda a sua carreira.

    O PLC 9/2025 extingue o RTI e a CPRTI — pilares da meritocracia científica — e impõe uma progressão na carreira de até 36 anos com salários defasados. Como a senhora avalia o impacto dessa proposta, que desmonta a estrutura atual sem justificativa técnica e inviabiliza a atração de talentos, colocando em risco a sobrevivência dos institutos de pesquisa paulistas?

    Vejo com grande preocupação o PLC 9/2025. Até posso entender que a carreira de pesquisador científico de SP necessite atualizações, afinal tudo na vida pode ser melhorado, precisa ser atualizado para ser competitivo. Acredito antes de tudo, na democracia; acredito que as questões devem ser discutidas entre as partes, acredito na negociação como forma de maturidade entre as partes. Infelizmente a proposta do governo, embora tenha alguns pontos positivos, acaba representando um retrocesso, pela imposição, pela falta de diálogo, por não incluir a carreira dos funcionários, por extinguir a CPRTI que sempre prezou por ser uma comissão justa e com critérios, julgando a competência e a integridade dos pesquisadores no serviço público estadual. Os salários defasados impõe uma condição injusta para os pesquisadores científicos dos institutos, um grande desestimulo a sua atuação. Infelizmente, esse desestímulo e a baixa reposição de quadros profissionais pode levar a extinção de nossos tão valiosos institutos.

    E como a senhora vê as reiteradas tentativas do governo do Estado de São Paulo de vender partes das terras do IAC, alegando que nelas não são realizadas pesquisas científicas. Como essas vendas (privatizações) podem impactar a pesquisa pública paulista, em especial a do setor agro?

    Sou em princípio contra a venda das fazendas do IAC e de outros institutos. Sim, nem todas as áreas são utilizadas para a pesquisa. Sim, somos um número bem menor de pesquisadores e funcionários do que já fomos no passado, e estamos mais eficientes, mais mecanizados, mais automatizados, de maneira que até poderíamos realmente diminuir nossas áreas experimentais. Mas continuo sendo contra, e por quê? Porque cada vez que cedemos ou vendemos parte da área, trazemos as divisas da cidade para mais perto da atividade agrícola, de maneira que a pressão da cidade vizinha, acaba em poucos anos, inviabilizando a atividade de pesquisa agrícola; a cidade “encosta” cada vez mais agressivamente, com suas compreensíveis exigências de não quero poeira de tratores, não quero barulho de máquinas, não quero defensivos etc. E ao mesmo tempo, a cidade precisa de áreas verdes, de áreas de “respiro”, então se não conseguimos ter atividades de pesquisa em 100% das áreas das unidades experimentais, áreas verdes podem ser por elas mantidas, de maneira tão nobre quanto a abrigar experimentos. Nossas estações experimentais podem ser parques utilizados para educação ambiental, ensino agronômico, além da divulgação das atividades da SAA-SP.  A Estação Experimental de Jau do IAC, hoje com o nome de Serviço Regional de Pesquisa de Jaú – Hélio de Moraes, onde trabalho, desempenha esse papel frente às comunidades do município, além de desenvolver pesquisa agronômica, como seu principal objetivo.

    Entrevista a Bruno Ribeiro, para a APqC

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