
Afonso Peche Filho*
A ciência, ao longo da história, tem sido reconhecida como uma das maiores expressões da inteligência humana: compreender a realidade, transformar desafios em possibilidades e promover melhores condições de vida. No entanto, seu avanço não é neutro. Conforme seus caminhos se entrelaçam com interesses corporativos, políticos e econômicos, torna-se urgente reafirmar um princípio fundamental: o conhecimento deve servir ao que contribui, preserva e realiza a vida humana e ambiental, e não ao que retira, explora ou destrói.
O desenvolvimento científico surgiu com o propósito de enfrentar incertezas e expandir horizontes. Foi por meio dele que sociedades conquistaram mais saúde, mais segurança alimentar, mais mobilidade e mais acesso ao conhecimento. Contudo, em muitos momentos, a ciência se distanciou de seu compromisso com a coletividade e passou a atender interesses restritos. Assim, descobertas que poderiam beneficiar milhões acabam, por vezes, concentradas em mãos que as utilizam para ampliar desigualdades ou maximizar lucros. Quando isso acontece, a ciência corre o risco de tornar-se ferramenta de legitimação de injustiças sociais e ambientais.
Essa distorção tem origem no modo como alguns grupos passam a enxergar a vida: não como um valor em si, mas como recurso. Pessoas e ecossistemas tornam-se peças de um tabuleiro econômico, e não sujeitos de direitos. Esse processo de coisificação gera invisibilidade, desumanização e opressão. Em vez de servir à dignidade, o conhecimento passa a justificar sua violação.
Uma ciência verdadeiramente comprometida com o futuro precisa reconhecer que a diversidade, humana, cultural e biológica, é parte essencial do próprio progresso. Quando a pluralidade de modos de existir é ignorada, se fortalece uma padronização artificial que desrespeita ritmos naturais e simplifica a complexidade da vida. Em contrapartida, quando a ciência aprende com essa diversidade e se orienta por ela, abre-se espaço para modelos mais justos, inclusivos e regenerativos.
O princípio orientador que deve prevalecer é simples: a ciência existe para promover a vida em todas as suas dimensões, ampliando direitos e protegendo aquilo que sustenta a nossa permanência no planeta. Seu avanço precisa ser acompanhado de uma reflexão ética profunda sobre impactos e responsabilidades. Perguntas essenciais devem guiar decisões de pesquisa, investimento e inovação:
– Para quem este conhecimento serve?
– Que vidas ele protege ou ameaça?
– Que futuros ele ajuda a construir?
Se tais perguntas forem ignoradas, a velocidade da inovação poderá ultrapassar a capacidade da sociedade de lidar com suas consequências. A urgência do lucro frequentemente atropela os tempos da natureza e das relações humanas, deixando para trás rastros de degradação ambiental, exploração do trabalho, privatização de direitos e destruição de laços comunitários. É preciso reconhecer que nem todo avanço tecnológico representa um avanço civilizatório.
O caminho mais justo para a ciência passa pela emancipação, não pelo controle; pela cooperação, e não pela competição predatória; pela proteção da vida, e não pela sua mercantilização. Isso significa aproximar o conhecimento científico dos territórios, das comunidades, das necessidades reais das pessoas, e das limitações biofísicas do planeta. Significa, também, fortalecer a pesquisa que busca soluções para desigualdades socioambientais, para crises climáticas, para a perda de biodiversidade e para a violação constante de direitos humanos.
A responsabilidade científica é, portanto, uma responsabilidade ética e histórica. O conhecimento que geramos hoje definirá o destino das próximas gerações. Por isso, a ciência precisa estar fundamentada em valores humanos sólidos, em diálogo com diferentes saberes, em compromisso com o bem comum. A razão só se torna verdadeiramente iluminadora quando caminha ao lado da sensibilidade, do cuidado e do afeto.
Assumir esse compromisso não é apenas um imperativo moral, é uma condição de sobrevivência coletiva. Uma ciência que contribui, preserva e realiza a vida é aquela que entende que progresso não se mede pela velocidade das descobertas, mas pelo alcance do cuidado que elas proporcionam. O futuro da humanidade depende dessa escolha. E ela começa agora.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.