
Quem andou nesta segunda-feira pelo Butantã, na Zona Oeste de São Paulo, sentiu na pele um número que assusta quando aparece nos horários de rua: a estação meteorológica municipal da região chegou a marcar 40°C no horário de pico, às 14h. É o ponto em que a brisa deixa de refrescar e se torna um bafo quente. No Ipiranga, porém, a máxima foi de 33°C. Uma temperatura intensa, mas suportável. Com ondas de calor mais frequentes, a diferença térmica entre as áreas da cidade está criando um novo tipo de desigualdade.
Um levantamento feito pela GLOBO mostra que, nas verões dos últimos dez anos, a diferença nas temperaturas máximas entre os bairros mais quentes e mais frios da cidade (medidos pelas 29 estações secundárias da prefeitura) tem sido de 4,2°C em média. Mas nos dias mais extremos a diferença entre as estações da capital paulista pode chegar até a 10,1°C.
Quando incluídas como áreas rurais e florestadas do município (sobretudo em Parelheiros e Marsilac, na Zona Sul), a diferença aumenta ainda mais. O recorde do contraste de temperaturas máximas na capital foi em 1º de janeiro de 2021, com uma amplitude de 14,8°C.
Um estudo da USP mostra que, dos diversos fatores que contribuem para essa desigualdade, muitos podem ser alterados. A geógrafa Milena Pires de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Geografia Física da USP, lembra que a disparidade de calor entre diferentes bairros não é obra da natureza.
— As mudanças têm muito a ver com relevância e aspectos mais físicos da cidade. Mas também com questões de infraestrutura influenciadas pelas políticas públicas, como distribuição de áreas verdes, presença de parques e áreas permeáveis — explica. — As diferenças nas construções também são importantes. Seja pelo material, seja pela forma das edificações. Onde há prédios mais altos, com fachadas espelhadas, por exemplo, acaba se consolidando uma ilha de calor. Tudo que impeça o ar de circular perto do solo também influencia.
Em um estudo publicado no mês passado no periódico acadêmico Aracne, da Universidade de Barcelona, a pesquisadora usou imagens do satélite Landsat 8, da Nasa, para mapear diferenças de calor em menor escala na cidade. O trabalho foi feito com inferência da temperatura por emissão de radiação infravermelha, e atestou que, em um espaço de poucos quarteirões, a temperatura pode variar 5°C no mesmo momento.
Em outro estudo, o engenheiro Pedro Almeida e a gestora ambiental Flávia Ribeiro obtiveram os dados das estações prejudiciais do Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) da prefeitura para tentar entender quais bairros estavam sendo mais afetados pelo efeito ilha de calor.
Entre os distritos mais impactados estão bairros de periferia, como Tucuruvi, Penha, Tremembé e Vila Prudente. Mas também outros mais centros como Pinheiros, Vila Mariana e Sé, segundo concluíram os pesquisadores, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, em artigo na Revista Brasileira de Meteorologia.
Almeida e Ribeiro adquiriram o conceito de efeito de ilha de calor de dossel, que avalia a temperatura no espaço mais próximo ao solo. “O uso residencial, comercial e de serviços, combinado com porcentagens relativamente menores de áreas verdes urbanas, destacado para o efeito de ilhas de calor urbanas de dossel, destacando as conexões intrincadas entre o desenvolvimento urbano e as mudanças climáticas localizadas”, afirmam os pesquisadores no artigo.
Diante do agravamento das ondas de calor e dos eventos extremos que devem ocorrer à medida que a mudança climática global avança, os fatores que influenciam o clima local se tornam mais, e não menos, relevantes, afirmados. “Essas descobertas realçaram o impacto do desenvolvimento urbano na mudança climática localizada e forneceram insights detalhados para o planejamento urbano e políticas públicas na área metropolitana de São Paulo”, aconselham os dois pesquisadores.
Na área urbana, essa diferença segue muitas vezes o padrão de desigualdade social, com bairros centrais mais arborizados sendo oásis privilegiados dentro da cidade. Alguns bairros de alto padrão em São Paulo também são quentes, principalmente em centros comerciais, mas os prédios que ocupam são normalmente condomínios e escritórios com ar-condicionado.
Questão de lei
Milena Sousa também analisou a forma com que essas diferenças localizadas de impacto do calor são vistas pela legislação local.
São Paulo é uma das poucas cidades brasileiras com uma lei municipal sobre mudanças climáticas, o que é científico como um mérito importante. Milena, porém, critica seu conteúdo, sobretudo nas licenças de construção com poucas restrições para se erguer prédios mais altos.
— Quando a gente analisa o Plano Diretor e olha para a legislação, uma coisa não condiz com a outra — afirma. — Faltam efeitos práticos para a legislação, tanto de monitoramento, quanto de implementação.