Em 1989, o último caso de paralisia infantil, doença causada pelo vírus da poliomielite, foi registrado no Brasil. A conquista foi resultado de uma ampla mobilização popular em prol da imunização, ao longo de toda a década anterior, e da efetividade da vacina oral contra a pólio (VOP), batizada de “gotinha”. Agora, por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), o esquema de proteção contra a doença será atualizado e as duas doses de reforço feitas com a VOP serão substituídas pela versão injetável (VIP).
“Tudo o que conquistamos no Brasil em relação ao controle da pólio foi graças à VOP. Entretanto, não temos dúvidas que essa mudança será muito positiva, uma vez que foi baseada em sérios critérios epidemiológicos, científicos e recomendações internacionais” reforça a gerente de Farmacovigilância do Butantan e diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Mayra Moura. O objetivo é que a atualização, combinada aos crescentes esforços de aumento da cobertura vacinal – os números saltaram de 77,14% em 2022 para 85,91% no ano passado –, mantenha o país livre da circulação do poliovírus.
Entenda as vantagens da mudança
O Brasil vem trocando gradativamente a vacina oral pela versão injetável há mais de dez anos. Em 2012, foram alteradas as três primeiras doses que compõem o esquema primário de imunização – aplicadas aos 2, 4 e 6 meses de vida –, mantendo-se os dois reforços – feitos aos 15 meses e aos 4 anos – com as gotinhas. “De cara, o primeiro ganho foi em abrangência. A VIP é feita com o vírus inativado e pode ser aplicada em qualquer pessoa, em qualquer faixa etária; já a VOP foi desenvolvida com vírus atenuado e não é recomendada para crianças imunodeprimidas”, pontua Mayra Moura.
Outra vantagem – e, talvez, a mais relevante – foi conter a disseminação do chamado vírus vacinal da poliomielite que, por se tratar de um produto oral, naturalmente é excretado pelas fezes das crianças imunizadas. A questão é que, em casos extremamente raros, o vírus atenuado (enfraquecido) podia sofrer mutações e desencadear a doença.
“É interessante, porque, no passado, o fato do vírus ser excretado pelas fezes foi fundamental para o sucesso da erradicação da pólio em diversos países”, detalha a gerente de Farmacovigilância e diretora da SBIm. O aumento da circulação viral da versão oral permitiu que inúmeras pessoas que ainda não haviam sido vacinadas entrassem em contato com o patógeno e ativassem seu sistema imunológico contra ele.
Por fim, outra consequência positiva da substituição completa da VOP pela VIP é a simplificação do esquema vacinal. Agora, em vez de duas, será necessária uma única dose de reforço, aplicada aos 15 meses de idade. “Do ponto de vista de saúde pública, o impacto é enorme, pois teremos os esquemas vacinais completos mais rapidamente. Ou seja, as pessoas estarão plenamente protegidas mais cedo. Além de ser uma chance a menos de furar o calendário de imunização.”
A recomendação do Ministério da Saúde é que o imunizante oral deixe de ser utilizado em todas as salas de vacina do país ainda em 2024.
Falsa sensação de segurança
Mesmo com os casos de paralisia infantil diminuindo 99% desde 1988 em todo o mundo – o número de registros caiu de 350 mil para apenas seis, em 2021 – a poliomielite continua a ser classificada como uma emergência em saúde pública de importância internacional pela OMS. Atualmente, a doença permanece endêmica apenas no Afeganistão e no Paquistão. De acordo com a OMS, se a pólio não for devidamente erradicada, 200 mil novos casos podem acontecer anualmente no mundo, dentro do período de uma década.
No Brasil, apesar dos recentes avanços na cobertura vacinal contra a pólio – o índice aumentou 8% entre 2022 e 2023, superando a casa dos 85% –, a situação ainda é de risco. Desde 2016, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), braço da OMS nas Américas, mantém o país na lista das nações que correm o risco da reintrodução do vírus selvagem.
“As pessoas viajam de um país para outro, o fluxo internacional é constante. Isso significa que quanto menos brasileiros estiverem vacinados, maiores são as chances de um indivíduo que, porventura, acabe chegando ao Brasil com a doença, encontre com pessoas suscetíveis, dando início a uma cadeia de transmissão”, alerta Mayra. Atualmente, o esquema primário contra a paralisia infantil foi alcançado em 86,44% do público-alvo – cerca de 9% distante da meta de 95% preconizada pela OMS.
Quando observada apenas a performance da Campanha Nacional de Vacinação Contra a Poliomielite de 2024, promovida pelo Ministério da Saúde ao longo dos meses de maio e junho deste ano, os números são alarmantes: das mais de 10,5 milhões de crianças identificadas como público-alvo, apenas 3,7 milhões foram vacinadas.
De acordo com a especialista, quando a vacinação de rotina está em dia, a adesão às campanhas tende a ser mais negligenciada. “Existe essa percepção diminuída do risco, mas os cuidadores precisam entender que a participação nessas campanhas é um pacto social, é ajudar coletivamente aqueles que estão desprotegidos. Se a campanha existir, é preciso vacinar também”, reforça.
Sobre a doença
A poliomielite, ou paralisia infantil, é uma doença provocada por um vírus altamente infeccioso, capaz de atingir crianças e adultos. A transmissão acontece pelo contato direto com fezes ou secreções infectadas, eliminadas por pessoas doentes. Nos casos mais graves, o problema pode ocasionar diversas formas de paralisia musculares, principalmente nos membros inferiores. Na década de 1980, ao menos 1.000 crianças ficavam paralisadas em decorrência da pólio anualmente, em diferentes partes do mundo, segundo a OMS.
Com informações de Natasha Pinelli (I. Butantan) / Fotos: Shutterstock