Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo

Atua na defesa dos Institutos Públicos de Pesquisa Científica do Estado de São Paulo

A liberdade científica

Afonso Peche Filho*

A liberdade científica constitui um dos pilares fundamentais da produção de conhecimento e da responsabilidade social da ciência. Entretanto, essa liberdade não pode ser compreendida como uma condição estática e permanente; ela é historicamente construída e continuamente tensionada por forças políticas, econômicas e culturais que moldam o modo como o pesquisador se insere no mundo. Ao longo do tempo, o ideal de cientista comprometido com o bem comum convivendo com um cenário de restrições e desafios éticos sofreu transformações profundas, que hoje colocam em dúvida até que ponto a ciência permanece fiel à sua vocação emancipadora.

Durante grande parte da história da ciência moderna, consolidou-se a imagem de um pesquisador que, mesmo enfrentando limitações materiais e ceticismo, orientava sua prática pelos interesses coletivos. A busca pelo conhecimento era um fim em si, e o avanço científico era visto como parte de um projeto civilizatório: compreender fenômenos naturais, solucionar problemas sociais, ampliar direitos e promover o bem-estar. O reconhecimento não estava associado à visibilidade imediata ou à rentabilidade econômica, mas à contribuição legítima para a sociedade. Tratava-se de um exercício de responsabilidade: o saber científico só fazia sentido quando auxiliava a transformar positivamente a realidade.

Contudo, a crescente interdependência entre ciência, tecnologia e mercado ao longo do século XX redesenhou esse cenário. A pesquisa científica passou a ser um ativo econômico estratégico, indispensável à inovação industrial, à competitividade territorial e ao lucro privado. Instituições, empresas e governos passaram a financiar ciência com expectativas explícitas de retorno. Nesse contexto, consolidou-se um ambiente em que a liberdade científica é, ao mesmo tempo, proclamada como valor essencial e condicionada por interesses que frequentemente ultrapassam os limites da ética ou do compromisso social. A autonomia, antes ancorada na legitimidade pública do conhecimento, tornou-se subordinada à lógica do financiamento, do mercado e das métricas de produtividade acadêmica.

Essa transição produziu contradições expressivas. De um lado, jamais houve tanta liberdade formal: pesquisadores podem acessar dados, comunicar resultados de forma rápida, interagir em redes internacionais, utilizar tecnologias avançadas e desenvolver experimentações antes inimagináveis. De outro, instala-se uma dependência estrutural de recursos e do aceite institucional, que limita o espaço para perguntas ousadas e para pesquisas que não se enquadram nos critérios de rentabilidade, impacto midiático ou aplicabilidade técnica imediata. Projetos que visam benefícios coletivos de longo prazo, mas sem retorno econômico rápido, tornam-se frágeis e marginalizados. A ciência corre o risco de ser reduzida a um instrumento de legitimação tecnológica do capital global.

Esse fenômeno gera uma acomodação disfarçada de virtude. A docilidade diante de interesses dominantes não apenas se normaliza: ela é celebrada. Pesquisadores que se alinham à agenda econômica ou que reproduzem consensos hegemônicos são premiados com reconhecimento, financiamento, influência e prestígio institucional. Enquanto isso, a ciência crítica, voltada à resolução de problemas estruturais da sociedade como desigualdade, pobreza, degradação ambiental e injustiça territorial, permanece muitas vezes invisibilizada. A liberdade científica, quando lida apenas como liberdade de produção técnica sem responsabilidade ética, perde seu caráter emancipador e transforma-se em servidão disfarçada.

A situação é ainda mais complexa quando se analisam os mecanismos de avaliação da produtividade científica. Indicadores quantitativos, como número de artigos, fator de impacto e captação de recursos, passam a definir o valor do pesquisador. Nesse cenário, o ato de conhecer deixa de ser uma experiência de descoberta e passa a ser uma estratégia de sobrevivência acadêmica. A criatividade, motor essencial do pensamento científico, é moldada por expectativas externas, e a coragem intelectual é substituída pela conformidade. Assim, a ciência deixa de ser um território de questionamento e passa a ser um espaço de validação de interesses estabelecidos. Essa inversão ameaça silenciosamente os fundamentos da própria racionalidade científica.

A defesa da liberdade científica, portanto, não se resume a proteger o pesquisador de censuras explícitas, mas a garantir condições para que o conhecimento permaneça guiado por princípios éticos e por compromissos sociais. Exige reconhecer que a ciência tem o dever de enfrentar problemas reais, especialmente aqueles que não geram lucro, mas que determinam o futuro coletivo, como a crise climática, a segurança alimentar, a proteção da biodiversidade, o acesso universal à saúde, a sustentabilidade urbana e a justiça socioambiental. Problemas dessa natureza demandam ciência livre para questionar modelos econômicos e políticos que colocam em risco a vida em todas as suas formas.

A liberdade científica também implica aceitar que a verdade pode ser desconfortável. O pesquisador deve preservar a independência intelectual, mesmo diante de pressões que buscam manipular resultados, ocultar evidências ou direcionar conclusões para manter privilégios. Isso requer não apenas condições materiais adequadas, mas também uma cultura de integridade acadêmica e de responsabilidade pública. A ciência não deve ser submissa nem neutra: ela é um ato político na medida em que interfere diretamente na estruturação da sociedade.

Em última instância, a liberdade científica se afirma quando o pesquisador escolhe o caminho mais difícil: o compromisso irrestrito com a vida, com a justiça e com o futuro comum. É nessa escolha que a ciência reencontra sua razão de existir. Ser livre, no campo científico, significa não se curvar ao poder que corrompe, ao mercado que limita e ao reconhecimento que aprisiona. Significa devolver à sociedade aquilo que lhe pertence de origem: o conhecimento como patrimônio coletivo e instrumento de transformação.

A ciência que não ousa contestar os interesses que ameaçam a vida deixa de ser ciência e passa a ser técnica a serviço do poder. A ciência que reivindica sua liberdade plena, ética, crítica e social, torna-se força de emancipação. Defender essa liberdade é defender o direito de imaginar e construir um mundo mais justo, mais saudável e mais digno para todos.

* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.

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