
Em agosto deste ano, o jornalista Bruno Blecher — uma das vozes mais respeitadas do jornalismo científico e ambiental brasileiro — publicou no Poder360 o artigo “São Paulo: herança científica em perigo”. No texto, Blecher traçou um retrato preciso e inquietante da situação dos institutos de pesquisa do Estado e dos riscos que ameaçam a continuidade da ciência pública paulista.
O autor lembrava que, desde o final do século XIX, a pesquisa científica em São Paulo se consolidou como patrimônio do Estado e do país. Foi o naturalista sueco Albert Löfgren quem, entre 1890 e 1918, lançou as bases da conservação ambiental e da pesquisa aplicada, criando o Horto Florestal e realizando o primeiro levantamento sistemático da flora paulista. Esse legado, dizia Blecher, encontra-se sob forte ameaça.
O jornalista apontava o quadro crítico enfrentado por instituições centenárias como o Instituto Agronômico (IAC), o Instituto Biológico, o Instituto de Pesca, o Instituto de Zootecnia e o Instituto Florestal: falta de concursos públicos, redução drástica do quadro de servidores, precarização das condições de trabalho, desestruturação administrativa e até planos de privatização de áreas de pesquisa.
Outro dado preocupante destacado no artigo é o ataque orçamentário à Fapesp, principal agência de fomento à pesquisa do Estado. A LDO de 2025 aprovada pela Alesp permite uma redução de até 30% nos repasses, o que pode representar perda de cerca de R$ 600 milhões por ano. Como lembrou Blecher, cerca de 90% dos recursos que sustentam a pesquisa nas universidades e nos institutos públicos paulistas vêm da Fapesp — um corte dessa magnitude ameaça a própria espinha dorsal da produção científica estadual.
Em paralelo, o governo paulista anunciou a venda de 35 áreas de pesquisa em 24 municípios, vinculadas ao IAC, à Apta e a outros institutos. A justificativa oficial era “gerar valor para o Estado”, mas, como ressaltou o jornalista, o custo ambiental e social de uma medida dessa natureza é incalculável. Ao comprometer o trabalho de campo e as coleções científicas, o Estado coloca em risco décadas de acúmulo de conhecimento que servem à agricultura, à conservação e à segurança alimentar.
Blecher também mencionava a defasagem salarial dos pesquisadores — com perda real de cerca de 70% nos últimos dez anos — e o vazio funcional resultante de quase 8 mil cargos vagos, dos quais apenas 2.200 permanecem ativos. O risco, alertava, é de um colapso silencioso na capacidade de produzir ciência aplicada, especialmente nas áreas de agricultura e meio ambiente.
Essas advertências agora ganham novo peso. Na última terça-feira, a Alesp aprovou o PLC 9/2025, projeto de autoria do governo estadual que altera a estrutura da carreira de pesquisador científico. A medida, duramente criticada por mais de vinte entidades científicas e ambientais, compromete a autonomia da pesquisa, extingue o Regime de Tempo Integral (RTI) e transfere a regulamentação de aspectos centrais da carreira para decretos do Executivo.
Na prática, o que Blecher chamou de “ameaça à herança científica paulista” se concretiza. As consequências previstas — perda de atratividade da carreira, evasão de talentos, desmonte institucional — estão mais próximas de se tornarem realidade. O “golpe” orçamentário e o esvaziamento técnico descritos em agosto agora se somam a um quadro jurídico e administrativo ainda mais desfavorável.
É verdade que há sinais positivos, como o edital da Fapesp de R$ 120 milhões, lançado em maio, para modernizar os institutos estaduais. Mas, diante das recentes decisões do governo e da aprovação do PLC 9, esse esforço isolado pode se mostrar insuficiente para reverter a tendência de fragilização do sistema de pesquisa.
As “previsões” de Bruno Blecher, portanto, não eram alarmismo: eram um diagnóstico fundamentado e alinhado à avaliação que a APqC tem feito da situação da pesquisa pública paulista ao longo dos últimos anos. E, infelizmente, começam a se confirmar. Cabe agora à categoria dos pesquisadores e às entidades representativas intensificar a mobilização, ampliar o diálogo com a sociedade e defender o que resta de um projeto de Estado baseado no conhecimento, na inovação e na sustentabilidade.
Se o século XIX nos deu a visão científica de Löfgren e o século XX consolidou um sistema público de pesquisa admirado em todo o país, é responsabilidade deste século impedir que esse patrimônio se perca por descuido, desmonte ou desinteresse. A herança científica paulista ainda pode ser preservada. Mas isso depende, mais do que nunca, de resistência, organização e voz ativa da comunidade científica.