
A educação pública paulista vive um processo acelerado de desfiguração. O que começou com a flexibilização curricular sob o governo Dória (PSDB) — com o programa que impôs disciplinas como “Projeto de Vida” — ganhou contornos ainda mais radicais com a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário Renato Feder. A cada ano, a matriz curricular é redesenhada, não para ampliar o acesso ao conhecimento, mas para esvaziar disciplinas fundamentais, especialmente as humanidades, e abrir espaço para conteúdos alinhados a lógica empresarial. Enquanto isso, o governo estadual repete o mesmo roteiro de desmonte nos institutos de pesquisa, como denunciado pela Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC). A educação e a ciência, pilares da soberania nacional, estão sendo tratadas como obstáculos a um projeto de sociedade que privilegia o lucro sobre a formação crítica.
A Resolução SEDUC nº 85/2024 consumou o que já era uma tendência: a gradual extinção de sociologia, filosofia, geografia e história dos currículos. No Ensino Médio, sociologia perdeu 66,7% da carga horária desde 2020; no Fundamental, geografia e história foram reduzidas a migalhas. Em seu lugar, multiplicam-se componentes como “Educação Financeira”, “Orientação de Estudos” e “Redação e Leitura” — que, na prática, servem de cavalo de Troia para impor plataformas digitais como Khan Academy, Me Salva! e Alura.
Como aponta Stephanie Fenselau em análise para Outras Palavras, “o trabalho docente é reduzido à tutoria de algoritmos”. Professores viram fiscais de metas de acesso, enquanto estudantes são treinados para responder exercícios padronizados, sem diálogo com a realidade. O Painel Escola Total B.I., ferramenta de Business Intelligence da SEDUC, transforma a educação em um jogo de cores: verde para quem cumpre metas, vermelho para os “fracassados”. A escola, antes espaço de construção coletiva, agora opera como uma linha de produção.
A Ciência também está na mira
O ataque à educação não é isolado. Paralelamente, o governo Tarcísio promove um desmonte nos institutos de pesquisa paulistas. A APqC denuncia cortes orçamentários, desvalorização salarial e o sucateamento de laboratórios que já foram referência nacional, além de reiteradas tentativas de privatizações e de alterações na carreira de pesquisador. Já em 2024, pesquisadores alertaram para o risco de colapso em áreas estratégicas, como saúde pública e meio ambiente — justamente temas que dependem de uma base sólida em ciências humanas e naturais, ambas agora marginalizadas nas escolas.
Há uma sintonia perversa entre os dois fronts. Vejamos as semelhanças: Esvaziamento do Conhecimento Crítico (assim como as humanidades são reduzidas para privilegiar “habilidades” alinhadas ao mercado, a pesquisa científica é tratada como custo, não como investimento); Privatização e Terceirização (plataformas digitais na educação seguem a mesma lógica da terceirização dos institutos — ambos alimentam um mercado bilionário, enquanto o Estado abre mão de seu papel estratégico); Controle e Autoritarismo (se nas escolas os dados são usados para rankear professores, na ciência, a perseguição a pesquisadores críticos ao governo silencia vozes dissidentes).
O projeto em curso não é apenas uma “reforma”: é uma ruptura com a ideia de educação como direito. Ao substituir conteúdos científicos por treinamentos técnicos, o governo paulista reproduz a lógica da uberização — formação rápida para empregos precários. Enquanto isso, a ciência, que poderia balizar políticas públicas, é asfixiada.
Como lembra Fenselau, “a escola virou fábrica de dados, não de cidadãos”. Resta saber se a sociedade permitirá que esse modelo se consolide ou se fará o enfrentamento a ele – o que se mostra a cada ano mais urgente.