
Em meio ao debate acalorado sobre o PL 9/2025, que ameaça extinguir os pilares da meritocracia científica no Estado de São Paulo, o pesquisador Rogério Bertani (na foto, de colete amarelo à direita), do Instituto Butantan, emerge como uma voz crítica e experiente. Participante de um ato na Assembleia Legislativa (Alesp) organizado pela APqC (Associação dos Pesquisadores Científicos), Bertani não hesita em denunciar o que chama de “desmonte da pesquisa pública”. Para ele, a proposta — que extingue o RTI (Regime de Tempo Integral) e a CPRTI (Comissão Permanente de Regime de Tempo Integral) — inviabiliza a atração de talentos e coloca em risco institutos históricos como o Butantan. “O estudo dos animais peçonhentos, iniciado por Vital Brazil há um século, pode desaparecer por falta de concursos e mudanças nas regras da carreira”, alerta.
Da Zona Leste ao Butantan: uma vida dedicada à ciência
Nascido na periferia de São Paulo, Bertani descobriu sua paixão pela zoologia ainda criança. Aos 11 anos, pegava ônibus até o Instituto Butantan para consultar livros e entregar aranhas coletadas perto de casa para identificação. Aos 14, uma picada de escorpião-marrom — tratada no Hospital Vital Brazil — marcou seu destino: estudar biologia e dedicar-se aos animais peçonhentos. Em 1994, após estágios desde 1988, tornou-se pesquisador do Butantan, onde atua há três décadas.
Seu trabalho exige expedições em locais remotos, enfrentando desde estradas perigosas até conflitos por terra. Em 2018, abortou uma missão na fronteira com a Venezuela por questões de segurança. “Se formos considerar todos os riscos, não fazemos esse trabalho”, diz. Mas as recompensas são únicas: conhecer o “Brasil profundo”, preservar espécimes para futuras gerações e documentar ecossistemas ameaçados. “Muitas áreas onde coletamos já desapareceram, virando cidades ou pastagens”
Quando começou, a aracnologia brasileira era um “caos”. Espécies eram descritas por amadores em revistas de comércio de pets. Seu mestrado (1993) e doutorado revolucionaram o campo: identificou caracteres morfológicos em órgãos sexuais de machos e estudou cerdas urticantes, publicando trabalhos que hoje são referência global. “O Brasil tem a fauna mais rica do mundo, e agora está entre as mais bem estudadas”, orgulha-se. Suas revisões taxonômicas, como as das aranhas arborícolas das Américas, são pioneiras.
Bertani também estuda aracnídeos perigosos, como aranhas-marrons (Loxosceles) e armadeiras (Phoneutria). Mas é crítico da falta de investimento no combate ao escorpionismo, problema crescente devido à expansão urbana de espécies como Tityus serrulatus. “Faltam especialistas e pesquisas. Enquanto isso, crianças morrem”, lamenta. Em 2025, nenhuma das 11 vagas do Butantan foi para estudar animais peçonhentos — um sinal alarmante para ele.
O pesquisador expõe a lógica perversa do tráfico: espécies raras ou recém-descobertas, como a Typhochlaena chapadensis, são cobiçadas por colecionadores. “Traficantes usam até fotos postadas em redes sociais para localizar animais”, denuncia. Ele alerta para os riscos de espécies exóticas invasoras, como já ocorreu com o Aedes aegypti: “O poder público age tarde, quando o prejuízo é irreparável”.
Ciência sob ataque: o legado em risco
Para Bertani, o PL 9/2025 é o golpe final em uma carreira que já enfrenta décadas de desvalorização. “O desenvolvimento econômico de qualquer país depende do desenvolvimento científico e tecnológico”, ele afirma, lembrando que “o Estado de São Paulo se desenvolveu economicamente graças aos investimentos em institutos de pesquisa e universidades que se tornaram referências mundiais”. Com pesquisadores próximos da aposentadoria e sem reposição adequada, ele vê o risco real de extinção de linhas de pesquisa essenciais. “O que será das pesquisas desenvolvidas há anos, e que podem simplesmente desaparecer? Será que a sociedade tem ideia do retrocesso que essas medidas representam?”, questiona. Sua luta vai além da aracnologia – é um alerta sobre o futuro da ciência pública brasileira. “Estamos falando do trabalho iniciado por Vital Brazil há mais de um século. Se não houver concursos e valorização da carreira, esse legado histórico pode acabar”.
Leia a entrevista na íntegra com o pesquisador Rogério Bertani (clique neste link).