Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo

Atua na defesa dos Institutos Públicos de Pesquisa Científica do Estado de São Paulo

O Governo do Estado de São Paulo pode vender a Fazenda Santa Elisa? 

Por Marco António Teixeira Zullo – Pesquisador Científico (aposentado), ex-Diretor Geral do Instituto Agronômico 

O Governo do Estado de São Paulo encomendou, ao Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), estudos visando o desmembramento da Fazenda Santa Elisa, a principal estação experimental do Instituto Agronômico (IAC), localizada em Campinas e utilizada ininterruptamente na pesquisa agrícola desde 1890, o que permitiu a obtenção de resultados que impactaram sobremaneira a evolução das agriculturas paulista e brasileira, abrindo caminho para a pujança do agronegócio nacional. 

Esta fazenda, de cerca de setecentos hectares, é presentemente limítrofe a zona urbana de elevado valor imobiliário, o que ocasionou a destemperada iniciativa de fragmentação de um ecossistema de pesquisa agrícola em nome de um pretenso, irreal e insignificante reforço do Tesouro do Estado que desperta a cobiça de setores descompromissados com a pesquisa científica e tecnológica, mormente na área de agricultura, mas ávidos de um vultoso lucro sem qualquer compromisso social relevante. 

A Santa Elisa se compõe de uma área urbanizada que compreende uma série de laboratórios, oficinas, depósitos, unidades de beneficiamento e armazenamento de sementes, viveiros de mudas, instalações para quarentena de plantas ou conservação de sementes e outras necessárias ao seu trabalho. Compõe-se, ainda de uma área agricultável onde ocorrem a experimentação agrícola, incluindo-se aí áreas de conservação de germoplasma de culturas perenes (como as de café, cacau, seringueira, pupunha, macaúba e outras palmeiras, frutíferas entre tantas) e a produção de mudas e sementes certificadas que serão utilizadas pelo pequeno e médio agricultor e de uma área de preservação ambiental, com córregos, represa, lagos, nascentes, mata ciliar, resquícios de cerrado e mata atlântica. Pequenas áreas são atualmente ocupadas por órgãos da Prefeitura Municipal de Campinas, entre eles uma usina de compostagem. 

Tanto ela quanto outras estações experimentais do IAC e de outros institutos são parte da estrutura de institutos de pesquisa reconhecidos pela Lei Complementar nº 125, de 18 de novembro de 1975, do governo Paulo Egídio Martins, e, como tal, patrimônio teoricamente protegido pelo Artigo 272 da Constituição Estadual de 5 de outubro de 1989, que estabelece que “O patrimônio físico, cultural e científico dos museus, institutos e centros de pesquisa da administração direta, indireta e fundacional são inalienáveis e intransferíveis, sem audiência da comunidade científica e aprovação prévia do Poder Legislativo”. Este dispositivo constitucional, várias vezes desrespeitado, foi alçado à condição de irrelevância com a edição da Lei nº 16.338, de 14 de dezembro de 2016, do governo Geraldo Alckmin, que permitiu a alienação ou cessão do todo ou partes de centros de pesquisa dos Institutos Agronômico, Biológico e de Zootecnia. Na prática o Artigo 272 foi revogado por modificações que a Lei 17.293, de 15 de outubro de 2020, proposta pelo governo João Dória, introduziu na citada Lei 16.338, que passou a permitir que o Governo do Estado ou suas autarquias alienem, cedam direitos possessórios ou reais ou concedam o uso de imóveis de praticamente qualquer tamanho (seja inteiro ou fragmentado) sem necessidade de ulterior autorização legislativa. Pode-se argumentar que no caso de instituições de pesquisa ainda haja a necessidade de audiência da comunidade científica, porém o texto constitucional não prevê que seja necessária a anuência à alienação, cessão ou concessão ou o quórum mínimo necessário ao evento, permitindo que audiências de provocadamente mínima representatividade sejam formalmente consideradas como cumprimento do dispositivo constitucional. 

Diferentemente das universidades estaduais paulistas, que são entidades autárquicas dotadas de personalidade jurídica própria (e, portanto, com administração e patrimônio próprios) e receita mínima própria, os institutos de pesquisa aos quais se aplica a Lei Complementar nº 125 (de Ação Regional, Agronômico, Biológico, de Economia Agrícola, de Pesca, de Tecnologia de Alimentos, de Zootecnia, Adolfo Lutz, Butantan, Dante Pazzanese de Cardiologia, Lauro de Souza Lima, Pasteur, de Saúde, de Pesquisas Ambientais e Geográfico e Cartográfico) são órgãos da administração direta do Governo do Estado e, como tal, têm patrimônio sob sua guarda mas que não são de sua propriedade, que é da Fazenda Pública do Estado de São Paulo (da sociedade, do povo, dos cidadãos do estado de São Paulo) mas não de eventual Governo do Estado, administrador (síndico) temporário do Estado de São Paulo. 

Cabe, então, perguntar: se como administrador o Governo do Estado de São Paulo pode, à vista da legislação vigente, alienar, ceder, permutar, doar, áreas de qualquer dimensão sob sua propriedade ou guarda a entidades públicas ou privadas, deve (é adequado) fazê-lo? 

À vista de todo o trabalho que se desenvolveu na Fazenda Santa Elisa nestes mais de 130 anos de atuação não deveria ceder qualquer espaço que fosse a qualquer ente. Resumidamente, foi lá que, ainda no século XIX, se iniciaram os estudos de aclimatação e cultivo de culturas de clima temperado no Brasil, de adubação, de proteção a pragas e doenças, que, em sequência, se ampliaram os estudos com cana-de-açúcar, café, algodão e outras fibrosas (como o bambu, o cânhamo, o rami e o sisal), citros, oleaginosas (como a soja, a mamona, o gergelim, o amendoim), leguminosas (como o feijão e o grão de bico), com raízes e tubérculos (como batata, mandioca, batata doce), arroz, milho, trigo e outros cereais (como a cevada), hortaliças (como tomate, morango, alfaces, alho, cebola, entre tantas), frutíferas (como abacate, manga, abacaxi, pêssego, ameixa, nogueiras e outras), uvas de mesa e viníferas e um sem número de outros cultivos de interesse econômico. Instruções agrícolas e de adubação para parte do que se estudou constam dos Boletins 100 e 200 do IAC, em constante atualização. Já a partir da década de 1930 iniciam-se os estudos de melhoramento genético de culturas selecionadas, como as de algodão, café, cana-de-açúcar, ao mesmo tempo em que se iniciam as coleções de germoplasma de plantas de interesse econômico e a partir da década de 1950 inicia a ampliação destas coleções com a introdução de material genético exótico que então permite a obtenção de materiais melhorados de maior produtividade devido a resistência a doenças e pragas, tolerância a condições edafoclimáticas adversas e de qualidade do produto. 

Hoje na Fazenda Santa Elisa, que abriga o Centro Experimental de Campinas do Instituto Agronômico, estudam-se não só o melhoramento genético clássico (que não envolve transgenia) de produtos como feijão, milho, soja, amendoim, trigo, grão-de-bico, batata, tomates, pimentas, seleção de outros como mandioca e batata doce, métodos alternativos de cultivo como a hidroponia e outras formas de cultivo protegido, métodos de proteção de plantas, a caracterização fitoquímica de produtos agrícolas e seus resíduos visando a ampliação de seu aproveitamento econômico, se realiza a produção de mudas e sementes certificadas para uso de agricultores, a introdução e quarentena de plantas vindas do exterior evitando a introdução de patógenos no país, a conservação de germoplasma através de sementes e a de espécies arbóreas e que tais, como o café (com mais de cinco mil diferentes acessos), o cacau, a seringueira, os bambus e as palmeiras, das quais a macaúba merece a atenção da vez (como o foi a pupunha) em projetos em colaboração com outras instituições de pesquisa. A par dos campos de experimentação e de produção de sementes, que ocupam a maior parte da Fazenda, há uma flora riquíssima em ambos os lados da Rodovia Zeferino Vaz, que corta a Santa Elisa, representada pela vegetação de ocorrência natural na área: floresta semidecídua, cerrado, mata ciliar, vegetação de várzea e floresta paludícola. Levantamentos indicam a presença de cerca de 360 espécies nativas nesta área, entre ervas, arbustos, trepadeiras e árvores. Em 1984, através do Decreto 22.027, de 22 de março de 1984, do Governo Franco Montoro, foi criado o Complexo Botânico, com as finalidades, entre outras, de preservar a coleção de germoplasmas de plantas floríferas e ornamentais do Instituto Agronômico, ampliar essa coleção através da introdução de novas espécies, manter mostruário vivo de material para estudo de composições paisagísticas e manter e conservar a área ocupada pelas coleções de germoplasmas. Somente no Complexo do Monjolinho, na Fazenda Santa Elisa, há cerca de 7 mil árvores de 700 a 1000 espécies, embora tenha ocorrido a introdução de 2-3 mil espécies nesta coleção, porém problemas de adaptação e outros eventos danosos tenham resultado na diminuição do número de espécies introduzidas e adaptadas. 

Tanto pelo presente quanto pelo passado não se recomenda a fragmentação e venda, em doses homeopáticas ou cavalares, da Fazenda Santa Elisa. O futuro, tanto da Fazenda Santa Elisa, quanto do Instituto Agronômico e demais institutos de pesquisa tanto da Secretaria de Agricultura e Abastecimento quanto das Secretarias de Saúde e de Meio Ambiente, é, no mínimo, nebuloso. Considerando-se o histórico dos últimos 30 anos de restrições orçamentárias, de não reposição de recursos humanos, de impedimentos para a obtenção de recursos extraorçamentários, malgrado a excelência de pesquisadores em obtê-los (porém frequentemente de pequena monta e de curto a médio prazo de aplicação), não se deve esperar sobrevida superior a dez ou quinze anos. Exercícios de futurologia são fadados a serem desmentidos com o passar do tempo, porém não se percebe, hoje, como no passado recente, vontade política de tratar dignamente os institutos de pesquisa do Estado de São Paulo e os seus servidores. Os diferentes governos do estado de São Paulo, desde a promulgação da Constituição Estadual de 1989, têm reservado um papel irrelevante ao trabalho desenvolvido pelos institutos acima citados. A demonstrá-lo, há institutos de pesquisa que sequer contam com pesquisadores científicos em atuação. A constante redução de recursos humanos sem que haja recomposição automática dos quadros, mas insuficiente quando, na melhor das hipóteses, ocorre decenalmente ou nem isso (nem vintenalmente agora), bem como a redução de recursos orçamentários até mesmo para despesas comezinhas como as de utilidades públicas, sem vislumbre de mudança, pelo contrário, de acirramento das dificuldades pelo atual governo, não nos permitem otimismo. 

Justificar historicamente, afetivamente, a permanência no Estado de São Paulo de estruturas cientificamente, ambientalmente respeitáveis como a Fazenda Santa Elisa não tem o menor significado para aqueles que vêm terreno, lote, gleba, como sinônimo de negócio imobiliário, não tem o menor sentido para quem ignora a preservação de espécies, a diversidade genética como um sustentáculo da vida, para quem vê o cifrão imediato como sinal de sucesso e eficiência em detrimento do papel social dos institutos de pesquisa, seja os de São Paulo ou alhures. 

Se quisermos futuro para os institutos de pesquisa do Estado de São Paulo, é necessário reavaliarmos o seu ambiente. É necessário estimarmos realisticamente as necessidades de recursos humanos e orçamentários para o funcionamento adequado destas instituições. É necessário rever-se as missões institucionais destes institutos, eliminando-se tarefas desnecessárias ou que possam ser mais bem desempenhadas por outros atores. É necessário dar-lhes organicidade, evitar duplicidade de funções. É necessário fornecer-lhes um mínimo de recursos mas, principalmente, respeito, com orçamentos adequados, com recursos humanos minimamente suficientes e dignamente remunerados (o que hoje não ocorre) e um mínimo de previsibilidade, constantemente reavaliada, de ação a médio e longo prazos. Para isso é necessário estabelecermos um plano de ação com objetivos, metas, e recursos previstos, concedidos, utilizados e permanentemente avaliados. A protelação de tomar estas medidas significa cruelmente a morte indigna destas instituições. 

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